segunda-feira, agosto 30, 2010

DEPORTADOS APENAS PORQUE SÃO CIGANOS?

Em qualquer um dos vários significados próprios do termo deportação, pressagia-se sofrimento, inumanidade. Se olharmos a acepção jurídica, quase sempre pressupõe injustiça, prepotência, autoritarismo; por vezes, racismo.
É triste que seja a França actual a dar um péssimo exemplo, neste sentido! Custa aceitar que se proceda com tanto rigor e espectacularidade, levando a pensar o que tantos opinionistas assinalam: “uma comunidade de pessoas expulsa ou deportada, não por aquilo que fazem, mas pelo que são”.

Como para mim esta linha de pensamento já não é nova, indigna-me todo aquele rigor contra o povo Rom, toda aquela insistência no tema segurança pública, identificando-se com as piores pulsões dos novos bárbaros que se instalaram no poder italiano.
“A França segue a nossa linha; nós ainda seremos mais duros” – Roberto Maroni, ministro italiano da Administração Interna

O Presidente francês nunca me inspirou grande simpatia, embora lhe reconheça algumas, poucas, qualidades como homem de Estado. Nunca esperei, todavia, que descesse a este baixo nível populista por cálculos políticos - captar simpatias na extrema-direita francesa, segundo a voz corrente. Não creio, porém, que tivesse de violentar as suas tendências políticas: enquadra-se bem no espaço donde pretende obter votos.

Certamente que a nova onda migratória de ciganos, provindos da Europa Oriental, cria problemas de ordem pública. Será assim tão difícil, para qualquer administração, solucionar esse problema e procurar incutir o respeito pelas regras com firmeza, inteligência e princípios de humanidade?

É difícil ajudar esta etnia a integrar-se sem a abandonar às piores condições de sobrevivência? Basta olhar com atenção os espaços miseráveis onde acampam e onde, frequentemente, é fácil a inserção de delinquentes habituais no tráfico de prostituição, drogas e mendicidade.

Convém não esquecer que nos países donde são oriundos – sobretudo Hungria, Bulgária e Roménia – são desprezados e tratados como seres sub-humanos.
O Sr. Sarkozy, descendente de emigrantes húngaros, não deve desconhecer essa realidade!

Tolerância zero no que concerne o respeito pelas leis; compreensão e solidariedade por quem pode ser banido apenas porque pertence a uma determinada comunidade: este é um ostracismo, chamemos-lhe assim, e que frequentemente testemunho, que eu não tolero nem quero tolerar, gostemos ou não de certos costumes, de certas atitudes de clã.
Se bem que, alguma vez procurámos compreender o modo de ser da etnia cigana e conhecer a história deste povo? Procurámos demonstrar-lhe esse interesse?
Quando uso o vocábulo “cigano”, sou completamente alheia ao sentido pejorativo com que a palavra nasceu. Para mim, é um nome com a mesma dignidade de qualquer outro.
[…] “Muitas vezes não é a raça a despertar execrações; é o modo de viver itinerante. […] No século XV, quando migraram para a Europa, os ciganos tinham um salvo-conduto de protecção universal, não nacional ou local: a protecção do Papa e a do Imperador.
Só uma protecção de natureza universal pode garantir «as legítimas diversidades humanas» às quais acenou Bento XVI no Angelus, pronunciado em francês em 22 de Agosto.
Hoje, a etnia Rom têm a protecção do Papa; a do Imperador (a política) brilha por cruel ausência.” - Bárbara Spinelli, La Stampa, 29/08/2010

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Olhemos agora outro aspecto da questão.
Que se está a passar nesta nossa Europa civilizada do iluminismo, humanismo, natural propulsora e defensora dos direitos humanos, testemunha, no século passado, dos piores crimes contra a humanidade dentro do seu território? Tudo isso foi esquecido?

É difícil aceitar e compreender que a xenofobia nasça e se propague em países outrora acolhedores e, contemporaneamente, países de emigrantes que sofreram os mesmos amargores que, hoje, infligem aos imigrantes, sobretudo extrcomunitários!

Donde provém esta intolerância contra o diverso, esta desconfiança contra quem busca os nossos países com a esperança de melhores condições de vida ou fugindo de regimes totalitários brutais? Foi a abundância que nos empederniu o coração?

Descrevo um dos múltiplos exemplos de xenofobia que se verificam quase diariamente.
Uma praia italiana do Adriático, Civitanova Marche. Um rapaz bengalês, vendedor ambulante, quis descansar um pouco e sentou-se numa cadeira de lona num estabelecimento balnear. Cinco miúdos de 10 / 11 anos rodearam-no e começaram a insultá-lo: “Levanta-te e vai-te embora. Isto é propriedade privada. Vai vender fora daqui. Isto é mercadoria que roubaste”.
Como não respondia, começaram a dar-lhe pontapés nas costas da cadeira e nas costas do pobre rapaz, evidentemente.
Levantou-se, sem protestar, dizendo apenas: Sois crianças muito más.
Com efeito, não somente eram más, como já bem imbuídas de veneno racista.

A parte mais odiosa deste episódio, todavia, foi a indiferença e cinismo de um grupo de adultos – talvez os pais – que presenciava o que estava a acontecer e riam-se, muito divertidos, das proezas daqueles fedelhos malcriados.

Ainda bem que um repórter da agência Ansa assistiu a esta cena indecente e divulgou-a em todos os seus pormenores.
Interrogou o proprietário do estabelecimento e outros banhistas, mas ninguém se apercebeu de nada!...
Talvez - quem sabe! - a vergonha começasse a morder-lhes a consciência. Mas não acredito.
Alda M. Maia

segunda-feira, agosto 23, 2010

POLÍTICOS E POLITICANTES

O verdadeiro político seria aquele que classificaríamos como homem de Estado, estadista movido por convicções e dotado da arte de interpretar e gerir a coisa pública com inteligência, intuição, pervicácia e honestidade. Porém, homens (ou senhoras) com estas características há poucos, melhor: são mais a excepção que a norma.

Já no que concerne os politicantes, estes profissionais da política que a avaliam como a melhor via para fazer carreira e obter vantagens, esses superabundam e, obviamente, constituem a maioria da classe política.

Pavoneando-se com uma retórica já muito experimentada, normalmente evidenciam escassez ou total ausência de ideias bem delineadas e concretas.
Explorando com uma certa habilidade as conveniências ou interesses das várias minorias, mas sempre apregoando um exclusivo empenho pelo bem comum, conseguem impor-se, sobretudo às grandes massas mal informadas ou pouco instruídas. E são estas grandes massas que, frequentemente, contribuem para o triunfo da falácia.

Todo este preâmbulo provém da declaração de Barack Obama sobre a construção do centro islâmico e mesquita – "Centro Córdoba" – na tristemente famosa zona “Ground Zero”.
Como todos leram, no discurso durante a ceia que antecedia o jejum de Ramadão, Obama pôs de lado prudência, oportunismos e tácticas políticas; evitou manter um silêncio aconselhável que, dadas as próximas eleições intermédias para o Senado, só o favoreceria: tudo isso ignorou e preferiu expressar a sua opinião sobre a construção do polémico centro islâmico.

[…] Desejaria ser claro. Como cidadão e como presidente, creio que, neste País, os muçulmanos tenham o mesmo direito que tem qualquer outra pessoa de praticar a própria religião. Nisto, incluo o direito de construir um lugar de culto e um centro comunitário numa área de propriedade privada em Lower Manhattan, segundo as leis e disposições locais. Esta é a América.
O nosso empenho pela liberdade religiosa deve ser inquebrantável. O princípio, na base do qual as pessoas de todas as confissões religiosas são bem aceites neste País e não serão discriminadas pelo seu governo, está ligado à essência daquilo que nós somos.
As palavras escritas pelos Fundadores devem perdurar no tempo. Somos uma nação de cristãos, muçulmanos, judeus, hinduístas – e de descrentes.
Fomos plasmados por todas as línguas, por todas as culturas provenientes das variadas partes da Terra
[…] - Barack Obama

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Muitos analistas ressaltaram, e muito bem, o facto de antepor a condição de cidadão à de presidente: “Como cidadão e como presidente
Com efeito, antes do presidente, é o cidadão comum que nunca deve esquecer os princípios fundamentais que determinam a “essência do que é ser americano”.

Aqui está, portanto, o exemplo do que eu considero um verdadeiro político.

Continuo a nutrir uma grande simpatia por aquele Presidente americano. Modesto, sentimentos éticos arreigados, perseverante nas ideias que procura levar a bom fim.
Peca por excesso de centrismo equilibrador, o que é difícil numa América de conservadorismos mais fundamentalistas que iluminados, de “lobbies” para onde milhões de dólares afluem, a fim de travar o que não convém a certos interesses. Mas um bom equilibrista, em política, não é defeito.

Diariamente apontam o actual baixo grau de popularidade de Obama e de confiança na eficácia da sua presidência. Nesse caso, mais um motivo para admirar a coragem de um político que deu maior valor aos seus princípios que a cálculos de conceder ou não conceder vantagens ao adversário. E não se pretenda milagres onde são impossíveis.

Os ultraconservadores republicanos do movimento Tea Party, a reaccionária Sarah Palin – gosto de ver senhoras na política, mas não mulherzinhas deste género - o faccioso canal televisivo Fox News não perderam a ocasião de partirem para novos ataques à política de Obama, do islamismo, logo, da construção da mesquita em Ground Zero: “Um facto gravíssimo que constitui uma ofensa ao povo americano e um insulto às vítimas” - linguagem muito própria de extremistas.

Já exprimi a minha opinião sobre a construção do “Centro Córdoba” na zona da tragédia do 11 de Setembro: jamais a considerei sobre o ponto de vista da legitimidade, pois essa é incontrovertível.
As minhas perplexidades nascem do local e momento escolhidos, onde o bom senso não brilhou por acuidade. E não mudo de opinião

Acredito piamente nas boas intenções do imã Feisal Abdul Rauf, autor e promotor da ideia. É descrito como pessoa de grande dignidade, muito equilibrada, moderada e inimiga de fundamentalismos. O seu projecto seria criar um centro onde as várias religiões se encontrassem e se conhecessem. Projecto nobre, sem dúvida.
Mas iniciativas deste género e naquelas circunstâncias, embora movidas por excelentes desígnios, devem sempre ponderar os sentimentos humanos e as inevitáveis reacções, frequentemente mais instintivas que reflectidas, mas sempre com predominância das primeiras.
As feridas ainda sangram, a tragédia foi imane, o choque abalou tremendamente o orgulho nacional. Ora, para mitigar dores e diluir ódios, é sempre necessária uma apropriada dose de tempo e ponderação.

Fatalmente que as polémicas explodiriam, as incompreensões sobrepor-se-iam, os sectários sempre em busca de causas extremas, imediatamente encontrariam motivo para lançar gritos de guerra.

Ademais, para um grande percentagem de americanos, as suas mentes ainda se mantêm muito fechadas, quer por ignorância, quer por orgulho ferido, à compreensão de uma religião islâmica digna de todo o respeito que nada tem que ver com um grupo de profissionais da violência que usam esse credo, ultrajando-o, para semear morte e ruína.
Eis por que se deve sempre dar tempo ao tempo e nunca forçá-lo.
Alda M. Maia

domingo, agosto 15, 2010

PORTUGAL: O PAÍS QUE CAMINHA COM A ENERGIA LIMPA

Subtítulo:
A fim de derrotar a dependência dos combustíveis fósseis, o Governo apostou numa série de projectos ambiciosos. Agora, 45% da electricidade produzida flui das novas instalações eólicas, hidráulicas e fotovoltaicas.

Este é o título e subtítulo de um artigo muito interessante de Elisabeth Rosenthal, copyright New York Times – La Repubblica.
Traduzo-o integralmente, segundo a versão italiana.


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Há cinco anos, os líderes deste país queimado pelo sol e varrido pelo vento fizeram uma aposta: empenharam-se numa série de projectos ambiciosos de energia renovável, dispondo-se a desfrutar, não somente o vento do país e a energia hidráulica, como também a luz do sole e as ondas oceânicas, a fim de reduzir a dependência de Portugal dos combustíveis fósseis importados.

Hoje, os cafés de moda em Lisboa, as indústrias do Porto e as sofisticadas estruturas turísticas do Algarve são, substancialmente, alimentados com energia limpa.

Este ano, cerca de 45% da electricidade distribuída em Portugal provirá das fontes renováveis e com um aumento de 17% em relação a cinco anos atrás.
Neste período, a energia eólica terrestre aumentou sete vezes e prevê-se que, em 2011, Portugal tornar-se-á no primeiro país a inaugurar uma rede nacional de estações de recarga de automóveis eléctricos.
«Estão todos contentes. É um lindo sonho. Não se pode competir. É excessivamente caro» - diz o Primeiro-Ministro José Sócrates.

A experiência de Portugal demonstra que é possível um progresso rápido e, paralelamente, evidencia os custos desta transição.
Os preços subiram de 15% nos últimos cinco anos; provavelmente, um aumento devido ao programa da energia renovável, segundo diz IEA – Agência Internacional para a Energia.
Num relatório de 2009, a mesma agência definia a transição portuguesa «um notável sucesso». Acrescentava, todavia, que «não é bem claro se o seu custo, quer económico-financeiro, quer como impacto sobre os preços da energia para o consumidor final, sejam bem compreendidos e apreciados».

O Primeiro-Ministro Sócrates que, depois da irresistível vitória de 2005, tinha imposto o renovamento energético, não obstante as objecções da indústria dos carburantes fósseis, o ano passado ficou a liderar um governo débil.
«Não podeis imaginar a pressão a que fomos submetidos naquele primeiro ano» - diz Manuel Pinho, ministro da Economia e Inovação de 2005 até 2009.

Para impor a transição energética, o governo de Sócrates reestruturou e privatizou as instalações estatais para a produção de energia, a fim de criar uma rede mais adequada às fontes renováveis e garantiu às empresas privadas contratos vantajosos.

Portugal poderia, perfeitamente, servir de laboratório de experiências, dada a grande disponibilidade de recursos de energia eólica e fluvial, as fontes renováveis mais convenientes, visto que não requerem carburantes e não produzem emissões.
Para conseguir fornecer energia renovável a nível nacional, tornava-se indispensável uma rede capaz de transportar a electricidade das localidades ventosas e soalheiras até às cidades. Porém, até há dez anos atrás, as empresas produtoras de energia possuíam, não somente as centrais eléctricas, mas também as linhas de transmissão.

Em 2000, o primeiro passo foi o de separar a produção de energia eléctrica do transporte, adquirindo todas as linhas de transmissão de energia eléctrica e gás que foram, depois, usadas para criar o esqueleto da que, a partir de 2007, será uma empresa controlada e cotada na Bolsa de Valores.
Sucessivamente, o governo abriu um concurso para obras de construção e gestão das instalações de energia eólica e hidráulica.

Fazer andar para a frente um país com a energia eléctrica derivante das forças da natureza, altamente imprevisíveis, requer, no entanto, novas tecnologias e a habilidade de um malabarista.
A empresa portuguesa “Redes Energéticas Nacionais” - REN – usa modelos sofisticados para as previsões meteorológicas, especialmente sobre a orientação dos ventos, e programas informáticos para calcular a energia produzida pelas várias instalações de energia renovável.

Por decénios, Portugal produziu a energia eléctrica graças às instalações hidroeléctricas situadas nos seus rios. Os novos programas combinam o vento e a água: de noite, nas horas mais ventosas, turbinas alimentadas pelo vento aspiram a água para o alto; durante o dia, a água desce a vale, gerando energia eléctrica, nos momentos de consumo mais elevado.

Quando as forças da natureza se apagam e a fim de assegurar uma energia estável, o sistema deve manter uma base de carburante fóssil que possa ser consumido sempre que necessário.
Embora as instalações de energia eléctrica operem, em Portugal, por muito menos horas que anteriormente, o País também está a construir instalações de gás natural altamente eficientes.

Os peritos de energia consideram a experimento de Portugal um sucesso.
Muitos ambientalistas, todavia, opõem-se aos planos do Governo de dobrar a quantidade de energia eólica, dizendo que a luz e o rumor das turbinas interferem no comportamento das aves; grupos para a conservação do ambiente temem que novas barragens destruam o habitat dos sobreirais portugueses.

As empresas locais lamentam que o Governa tenha permitido às grandes multinacionais substituí-las nos lugares que lhes caberiam. Os políticos venderam os programas de energia verde às comunidades com a promessa de novos empregos. Porém, a nível local, o efeito, frequentemente, demonstrou-se limitado.

Energia de fontes renováveis: em 2005, 17%; em 2010, 45%; em 2020 (objectivo), 60%
Défice comercial português devido à importação de energia (2005) = 50%
Poupança anual de Portugal – a projecto terminado (2020) = 1,7 mil milhões de euros.
La Repubblica, 11 de Agosto, 2010
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Alda M. Maia

domingo, agosto 08, 2010

A ETERNA QUESTÃO MORAL

De vez em quando, o pendão da questão moral é desfraldado como símbolo de uma luta política contra a tendência de interpretar a ética e legalidade como princípios insignificantes e as instituições como empecilhos. Evidentemente que entendo referir-me ao que se está a passar na Itália.

A actual crise política do governo Berlusconi nasce dos rebates de consciência do ex-aliado Gianfranco Fini - presidente da Câmara dos deputados - precisamente sobre o respeito pelo Estado de Direito e contra a desenvoltura como a ética e legalidade têm sido espezinhadas.

Devemos concordar que é uma atitude louvável e muito correcta.
Deixa-me um pouco perplexa, todavia, o motivo por que levou tanto tempo, aliado de há vários anos, a demonstrar publicamente o seu desagrado, provocando a ira do patrão e o consequente afastamento, por expulsão, do “Povo da Liberdade” (PDL).

Só me pergunto por que sempre votou sem pestanejar as tais “leis vergonha” que, despudoradamente, salvaguardavam os interesses do primeiro-ministro (e confrades), libertando-o de parte dos seus percalços judiciários.
Mas é sempre válido o ditado: mais vale tarde que nunca. Outras leis deste jaez, com o capcioso nome de “Reforma da Justiça”, estão em vias de ir a votação, se o governo não cair, obviamente.

Só me pergunto por que motivo, anteriormente, ficou impassível ante os ataques sistemáticos de Berlusconi à magistratura e às tentativas, conseguidas, de esvaziar o poder do Parlamento.
Por que razão fechou os olhos a um populismo da pior espécie, constantemente apregoado e actuado: o povo é soberano, Berlusconi ganhou as eleições, logo, não existem outros poderes.

Não se pode ignorar, todavia, que Gianfranco Fini demonstrou coragem e qualidades de um bom político. Oxalá não se trate de puro tacticismo de poder e seja verdadeiramente uma revolta sincera contra um regime de governo indecente. Mas insisto: será efectivamente sincera? Ou não se tratará de outras manobras?
(…) A língua dos políticos é bifurcada por definição, mas nunca, como agora, o jogo dos enganos é o instrumento-príncipe para a conquista do poder” – Eugénio Scalfari em La Repubblica de hoje.

Transcrevo parte de um editorial do semanário católico “Família Cristã”.
Certamente que não se trata de um artigo de “comunistas que odeiam o “Povo da Liberdade” - porque será que todas as espécies de regimes que escoiceiam as regras democráticas usam e abusam da palavra liberdade?!

(…) “O desastre ético está à vista de todos. O que provoca espanto é a resignação geral. A falta de indignação da gente comum.
É um sintoma que não devemos ignorar. Significa que o mal não diz respeito somente à classe política. Transbordou, atingindo a inteira sociedade. Prevalece a “moral feita à medida”: é bem apenas o que convém a mim, ao meu grupo, aos meus afiliados. O “bem comum” saiu de cena e tornou-se expressão obsoleta. A própria verdade objectiva submeteu-se a critérios de utilidade, interesses e conveniências.

(…) É fora de dúvida que existe, mesmo em altos níveis, uma alergia à legalidade e ao respeito das normas democráticas que regulam a convivência civil. O proclamado “garantismo”, sobretudo em favor dos potentes, é a pretensão, muito frequente, de impunidade total, não obstante a gravidade das imputações.
O apelo à legitimação do voto popular não é o salvo-conduto para a ilegalidade. No entanto, hostiliza-se quem invoca mais respeito pelas regras e pelos interesses gerais.
Uma concepção patronal do Estado reduziu ministros e políticos a “servidores”. Simples executores das vontades do chefe, sejam elas quais forem.
Pouco importa que o País caminhe para a ruína. Não se admitem réplicas ao pensamento único. E ai de quem se atreve a desafiar o “dominus” absoluto
.”

Faltaria apenas citar nomes, mas seria redundância. O Padre António Sciortino, director da revista Família Cristã, descreveu claramente o alvo do artigo.

No jornal Público tenho seguido os artigos sobre a Itália de Jorge Almeida Fernandes. Muito correctos e com variegadas citações de politólogos e editorialistas italianos. A descrição dos eventos, todavia, peca por excessiva esquematização. Explico melhor: se escrevesse sobre crises de um qualquer outro governo de um país democrático europeu normal, não as poderia descrever de forma diferente.

Ocupando-se, porém, da Itália, Jorge Almeida Fernandes omitiu explicar o que significa o fenómeno Berlusconi e o que de negativo tem o berlusconismo; omitiu aludir à onda de corrupção, recentemente descoberta, que envolve os colaboradores mais próximos do primeiro-ministro. Alguns foram detidos, outros continuam a ser investigados, incluindo um certo número de magistrados, um dos quais é o presidente do Tribunal da Relação de Milão: aceitou intervenções pouco ortodoxas, a fim de ser eleito para o cargo que ocupava. Parece que será transferido.
Já foi interrogado, pois que os magistrados do ministério público italianos - a maioria é constituída por pessoas sérias e competentes - conduzem os inquéritos com desassombro e independência.

Não penso que todas estas omissões - embora aqui e além apresente uma ou outra ligeira alusão - se baseiem na consciencialização de que os leitores portugueses já disso estão informados.
Se assim pensa, erra. Em Portugal, Berlusconi brilha mais pelo pitoresco das suas gafes e vícios amatórios que pelo regime que soube instaurar através dos potentes meios materiais e de comunicação de que é proprietário, sobretudo televisivos, ou que foi ocupando com pessoas que dele dependem: refiro-me à RAI. E com tudo isto ilude a opinião pública.
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Chego à conclusão, mas poderei errar, que o competente e informadíssimo jornalista do Público se incline mais para as opiniões dos colegas de área conservadora.
Citou Piero Ostellino, editorialista do Corriere Della Sera, o qual se diz liberal equilibrado. Respeito muito mais outros liberais que, sem o proclamarem, são-no verdadeiramente.

(…) Embora, no Parlamento, o seu governo fique exposto a uma minoria, conforme as circunstâncias e os humores do ex-aliado, no País os números ainda dão razão a Berlusconi e que continua ainda o mais capaz de falar à “pança” dos italianos. É o efeito da personalização da política que se apresenta com o nome populismo. Não é uma palavra feia, mas um modo de exprimir-se da soberania popular; é o “homem da rua” que vota. – Piero Ostellino, Corriere Della Sera, 06 de Agosto 2010. O negrito é meu.

Se isto não é berlusconismo puro, que raio de nome poderemos dar a semelhante opinião? De um autêntico liberal não o é, certamente.
Alda M. Maia

domingo, agosto 01, 2010

HOMENAGEM A UM MOÇO CORAJOSO
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Hoje decidi pôr de lado todos aqueles temas que, normalmente, me arrastam para as habituais “conversas com o computador”.
Hoje quero falar de um corajoso estudante de medicina brasileiro.

Um triste fado – usemos a expressão muito lusitana, dolente e choramingueira – determinou o que o mesmo estudante narra no seu livro de fim de curso.

"Uma curva, uma carreta em sentido oposto, uma fracção de segundos. Em 22 de Março de 2008, um acidente automobilístico mostrou-me o quanto a efemeridade do tempo é responsável pelo valor inestimável da vida. Hoje, justamente eu, que conheço como poucos o tesouro escondido em cada instante vivido; logo eu, que durante meses precisei caminhar, como equilibrista principiante, por sobre a linha ténue que separa a vida da morte; exactamente eu lanço mão da armadura dos grandes guerreiros da vida. Torno-me médico". (…)

Mas completemos a história. O acidente foi sério e quase mortal. Salvou-o a casualidade de um amigo passar, precisamente naquele instante que decide a vitória da vida sobre a morte.
Imediatamente deu o alarme, sobrevieram os socorros tempestivos, o estudante salvou a vida. Porém, teve de pagar um pesado tributo ao maldito “triste fado”: tiveram de amputar-lhe uma perna.

Dada a juventude da personagem, dado que se trata de um mocinho bonito (mesmo que fosse feio, seria o mesmo), dado que os hábitos de uma juventude alegre e despreocupada sempre o caracterizaram, previa-se uma reacção destruidora de tais características.
Fácil imaginar o desespero de quem deve enfrentar, naquela idade, um novo estilo de vida a que uma inesperada minoração física conduz.

Fácil imaginar, sem dúvida. Todavia, neste caso, a imaginação que abandone concepções corriqueiramente previsíveis. O nosso estudante revirou o drama, deu-lhe a face do optimismo e enfrentou a nova modalidade de programar a existência diária com despreocupação e coragem.

Levou essa nova modalidade de vida a tal ponto que não cultivou inibições, pudores - ou até mesmo o que seria um normal sentido de vergonha - em fazer-se fotografar e mostrar claramente a amputação.
È uma imagem que provoca uma forte emoção e desconforto!

Não esmoreceu, continuou o seu curso de medicina na Universidade Federal da Bahia – apoiado sempre pela mãe e as duas irmãs - e, neste ano 2010, eis o Sr. Dr. Victor Augusto.

Em toda esta história com um fim que se pode dizer muito feliz, existe apenas uma circunstância que evoca saudades. Ao pai do nosso corajoso moço não lhe concedeu a vida o tempo necessário para festejar com o filho este final de que tanto se orgulharia. Testemunhou-o a mãe, e bem mereceu estes momentos de júbilo.
Alda M. Maia