segunda-feira, junho 25, 2012

EI-LO DE NOVO!

Ei-lo de novo a tentar criar confusão e estragos na difícil situação política italiana, emergindo da marginalização a que fora forçado e dando início a declarações dignas do pior populista ou de um desequilibrado que não conhece os limites da própria demagogia.
Obviamente que me refiro a Berlusconi, personagem que desejaria votada ao esquecimento e completamente fora do ambiente político. Porém, o homem, na sua egolatria desmesurada, não concebe abandonar o palco nem ser ignorado. Ademais, ainda não renunciou à esperança de ser eleito Presidente da República Italiana. É incrível!

Começou por anunciar que “existem condições para que se eleja um novo governo em Outubro próximo”; estaria pronto, pois reúne condições para liderar os moderados italianos.
Parece que no partido do qual se sente patrão não estão muito entusiasmadas com este regresso e exclusivismo.

Ainda há inconscientes que o aplaudem e abstêm-se, porque disso não são capazes, de explicar-lhe que eleições antecipadas, em plena crise europeia e do euro, acarretariam danos enormes à estabilidade do país. A larga base ignorante e mal informada, porém, é uma calamidade em qualquer país.

Como não há limites para o pior, Berlusconi tem sido prolixo noutras declarações do mesmo teor, insistindo, sobretudo, numa saída do euro. Aliás, na sua infinita demagogia, sempre deixou transparecer um certo anti-europeísmo.
. “Alguém falará de escândalo, mas eu creio que não será uma blasfémia a hipótese de sair do euro”.
“Se a Alemanha não se retira do euro, seria então conveniente que Espanha, Itália e Grécia regressassem às moedas nacionais. Sair do euro não seria uma ideia assim tão extravagante”.

O que é extravagante é que um ignorante e irresponsável deste calibre ainda esteja em condições, com a força do seu partido ou do que resta dele, de criar problemas ao Governo de Mário Monti, governo que restituiu dignidade à Itália e que fora enxovalhada por aquele indivíduo.

Seria bom que a imprensa estrangeira e os observadores políticos dessem primária importância a este factor. Mário Monti não pode fazer milagres e tem de movimentar-se, com sageza e infinita paciência, no meio de mil escolhos criados por certos politiqueiros e o partido berlusconiano ("O Povo das Liberdades"), além de não descurar, justamente, a voz dos sindicatos.

Sempre me pergunto: dentro deste amontoado de fascistas encartados, fascistas encobertos, populistas, oportunistas e uma boa percentagem de pessoas sérias, como fazem estas últimas a permanecerem dentro de um partido deste género? Por que não se desengancham da preponderância populista de Berlusconi, dando vida a um movimento verdadeiramente democrático ou ingressando noutras formações políticas? Não compreendo!

Mário Monti concedeu uma entrevista a seis grandes jornais europeus: La Stampa, Le Monde, El País, Süddeutsche Zeitung, The Guardian, e ao jornal polaco Gazeta Wyborcza.

La Stampa publicou-a no dia 22, sexta-feira passada. Imprimi-a, a fim de a ler uma segunda vez com mais atenção, pois é verdadeiramente interessante e elucidativa.
As perguntas foram muitas, articuladas e abrangendo todos os aspectos da crise mundial, europeia e da zona euro.
Monti defendeu e esclareceu a posição italiana, exprimindo-se sem eufemismos nem subterfúgios sobre a verdadeira realidade do país em relação à realidade dos demais Estados-membros, do seu potencial económico e do facto que nunca pediu ajudas à Europa.

Há países e povos na Europa que, por qualquer motivo, têm a convicção de serem sempre os pagadores do resto da Europa. Olhemos o “fundo salva-Estados”, o EFSF: percentualmente, a Alemanha cobre 29,1%; a França, 21,8%; a Itália 19,2%; a Espanha, 12,7%.
A Itália, até hoje, não pediu empréstimos, mas cada dia que passa tem contribuído para muitos […] e com as altas taxas de juro que paga no mercado!

À pergunta: "Se tivesse dez minutos para convencer um hipotético herr Müller na Alemanha sobre os esforços da Itália, que lhe diria?"
Mário Monti respondeu: Caro herr Müller, antes de mais, relaxa-te, porque estás convencido ou convenceram-te que estás a manter um excessivo nível de vida italiano. Olha que não é assim, porque não houve financiamentos à Itália.
Não chego a pedir-te que acredites no facto que os alemães estão a ganhar vantagem pela simples razão de o teu país conseguir financiar-se com taxas de juro muito baixas, também como efeito invertido das altas taxas dos outros. […]

Fiquemo-nos por aqui. Se falo da política actual alemã, não saberia conter a minha profunda antipatia contra tanto egoísmo e arrogância.

segunda-feira, junho 18, 2012

MAS OS BÁRBAROS CHEGARAM…

“Na espera dos «bárbaros» também se arrisca a civilização” - Guido Rossi, no jornal Il Sole 24Ore de 10/06/2012.
Lendo este artigo sobre a “trágica situação actual” e no qual o autor alude ao poema “Esperando os bárbaros”, recordei-me que possuo o livro de poesias (edição italiana, Oscar Mondadori; tradução de Filippo Maria Penati) desse grande poeta grego: Konstantino Kavafis (1863-1933).

Que esperamos, reunidos na ágora?
Hoje chegam os bárbaros.
Por que motivo tanta inércia no senado? / E porquê os senadores se sentam e não fazem leis?
Hoje chegam os bárbaros. / Que leis devem fazer os senadores? / Quando chegarão, serão feitas pelos bárbaros. […]

Vejamos a parte final do poema:
Fez-se noite, e os bárbaros não vieram. / Algumas pessoas chegaram das fronteiras, / disseram que já não há mais bárbaros.
E agora, sem bárbaros, que será de nós? / Era uma solução, aquela gente.

«Abre-se com estes versos finais a trágica, apocalíptica e profética visão de uma Grécia que perdeu todas as esperanças de sobreviver e sente aproximar-se o triste abandono de toda a Europa» – Guido Rossi.

Será mesmo assim? Embora os bárbaros, com os rostos da Troika, já tivessem chegado, eu espero que estes desorientados e inconcludentes dirigentes europeus sejam atingidos por altos relâmpagos de inteligência, ponham de lado egoísmos alicerçados na concepção do “salve-se quem puder” e, finalmente, abram caminho a uma solidariedade responsável.

E já que hoje me dedico às minhas reflexões sobre o que fui lendo durante a semana, e que leio sempre com interesse, quer esteja de acordo ou não, interrogo-me: por que motivo José Manuel Fernandes – ex-director e editorialista do jornal Público, neoliberal não assumido - deve estar inquieto pela “pressão que está a ser colocada sobre a Alemanha”?

E continuando o seu artigo de sexta-feira passada, escreve:
Desde o início da crise que, de forma assumida ou encoberta, se exige à senhora Merkel que puxe do livro de cheques. A verdade é que Merkel já assinou muitos cheques. Num artigo no New York Times, Hans-Werner Sinn, presidente do Ifo Institute, lembrava que, além dos fundos de emergência criados, o Bundesbank já tinha transferido para os países da periferia, através do BCE, o equivalente a 874 mil milhões de euros. Somava depois as compras do BCE de dívida soberana nos mercados secundários e as outras contribuições da Alemanha…”

Foi pena que José M. Fernandes não tivesse dado a mesma atenção a Helmut Schmidt, quando publicou um longo artigo: “A minha Alemanha deve mudar caminho”.
Não se fixou nos “cheques da senhora Merkel”, mas escalpelizou o que foi e o que deve ser hoje a Alemanha.

[…] A memória do segundo conflito mundial e da ocupação alemã desempenha, ainda hoje, um papel dominante, embora latente. Para nós, alemães, é decisivo o facto que quase todos os nossos vizinhos e quase todos os judeus espalhados pelo mundo recordam o Holocausto e as infâmias cometidas, nos países da periferia, durante a ocupação alemã.
A geração de hoje não deve esquecer o que foi a desconfiança em relação a um futuro desenvolvimento da Alemanha que, em 1950, se abriu a estrada à integração europeia” – Helmut Schmidt, “A minha Alemanha deve mudar caminho”, em “Il Sole 24Ore”, 05/06/2012.

Mas voltando ainda aos “cheques da senhora Merkel”.
Foi só a Alemanha o único país da eurozona que socorreu os países da periferia? Os outros Estados-membros ficaram de braços cruzados e não puxaram dos próprios livros de cheques? Ah! Mas esquecemos que a Alemanha é somente um país sacrificado e nada devedora dos excelentes lucros económicos à eurozona!...

Paga proporcionalmente à sua economia, como os demais países.
Nos variadíssimos artigos sobre o empréstimo de 100 mil milhões de euros ao Governo de Espanha, qual ajuda financeira à banca espanhola, as informações são ricas em dados sobre a exposição dos bancos alemães, franceses, italianos, etc.
“A exposição dos bancos alemães para com os bancos espanhóis ainda é de 54% do crédito total. A quota dos contribuintes alemães será de 27%”.
Mas os contribuintes italianos pagarão 18% das ajudas, embora a exposição dos bancos italianos seja de 6%. Quem ficou em desvantagem?*

As eleições na Grécia tiveram um resultado que, num certo sentido, provoca um grande suspiro de alívio, quer à Europa quer aos Estados Unidos e China.
As atenções, agora, concentram-se na Alemanha, esperando em qualquer gesto de coragem e grandeza política – se possível - de Angela Merkel.*

A Alemanha parece que olha somente para 1923, o ano de Weimar e da hiperinflação. Dá apenas importância a isso e não a 1933, o ano do fim da democracia e da ascensão do nazismo, precedido de dois anos de uma profunda crise bancária em toda a Europa” – Nouriel Roubini

E agora sem bárbaros, que será de nós? / Era uma solução, aquela gente.

Sinceramente, auspicio à Grécia, após a formação de um governo estável, que “aquela gente”, a Europa, dentro de dos sacrifícios ainda necessários, levem a solução bem acondicionada numa robusta solidariedade.

Não quero finalizar sem referir a desenvoltura do sempre citado Financial Times. No último dia da campanha eleitoral grega, na edição em língua alemã – FT-Deutschland – publicou um artigo, escrito em grego, com o título: “Resisti ao Demagogo”. O famoso quotidiano financeiro aconselha os eleitores a “resistir à demagogia” de AlexisTsipras e do seu partido de extrema-esquerda Syriza, convidando a apoiar o partido “Nova Democracia” (que, efectivamente, ganhou as eleições).
Parece que o próprio dirigente do partido conservador, achando esta ingerência demasiadamente ostentada, emitiu um comunicado: Os gregos são um povo orgulhoso. Sabemos por quem votar. Dai a outrem os vossos conselhos.

Se isto não é falta de ética e de decência do Financial Times, o que é?


domingo, junho 10, 2012

UM NINHO DE VÍBORAS
NA CASA DE DEUS

«O vento abala a casa de Deus, mas ela não cai. Quando a casa é construída sobre a rocha, vacila, mas permanece sólida», assim falou Bento XVI, recentemente, inspirando-se no Evangelho de S. Mateus.

Se a casa de Deus, simbólica e hierarquicamente, é a Sede da Igreja Católica, da Cúria Romana, residência do Sumo Pontífice, deveria primar por transparência e simplicidade; demonstrar que é um impoluto e inatacável local, à imagem de um Templo, onde não são tolerados quaisquer tipos de vendilhões, intrigas, venenos, rivalidades, lutas pelo poder. Infelizmente, porém, a quotidianidade do Estado da Cidade do Vaticano é precisamente o oposto de tudo isto.

O vento que sibila fortemente e, de há meses, abala a estabilidade do Vaticano não constitui novidade. Dir-se-ia que os homens da Cúria Romana são escolhidos mais pelos seus dotes de intrigantes de palácio do que virtuosas criaturas eleitas para administrar singelamente as coisas da Igreja e defender os valores do Evangelho.

Sintetizemos o que os meios de informação têm desenvolvido amplamente, sobretudo nestas últimas semanas: o Secretário de Estado do Vaticano, Tarcísio Bertone, é a figura central das guerras e guerrilhas que põem tudo contra todos e todos contra tudo.
Bertone entendeu e entende que deve ser o único com a última palavra no Governo da Santa Sé e da Igreja. Tudo lhe deve passar pelas mãos e prepara terreno para não ter de renunciar ao cargo que ocupa, no próximo Outono, por limite de idade.

De há uns tempos a esta parte, cartas e documentos que jamais deveriam extravasar dos arcanos curiais - segundo as normais tradições de absoluta falta de transparência vaticana - chegaram a vários jornais, começaram a ser publicados e constituem matéria de programas televisivos.

Num programa do Canal La7, intitulado “Gli Intocabili” (Os Intocáveis) – activo desde Novembro 2011, às quartas-feiras - a emissão de 25 de Janeiro  ocupou-se do tema “A Conjura no Vaticano”, tendo como hóspede o director do jornal oficial do Vaticano, “O Observador Romano”, Giovanni Maria Vian.
O apresentador e responsável, o jornalista Gianluigi Nuzzi, desenvolveu quatro histórias baseadas em quatro desses documentos, anunciando: “histórias de corrupção, de conjura, de privilégios e encobrimentos”.
Quatro histórias que têm como motivo central a transferência, em Outubro 2011, de Monsenhor Carlo Maria Viganò para Washington com o cargo de Núncio Apostólico.

Viganò, em 2009 fora nomeado, por Bento XVI, Secretário-Geral do Governatorado da Cidade do Vaticano (uma espécie de ministério da economia), a fim de pôr em ordem as finanças descontroladas. Conseguiu-o, mas em cartas enviadas ao Papa e ao Secretário de Estado, denunciou “uma situação inimaginável de corrupção amplamente difusa; obras atribuídas sempre aos mesmos empresários e a preços duplos dos que se praticam fora do Vaticano”; furtos e desfalques, etc., etc.

Fatalmente, a honestidade de Monsenhor Viganò teve de pôr a nu um status quo de grande podridão; fatalmente, criou uma caterva de inimigos - aliás, já o previra, quando aceitou o cargo; e fatalmente, foi removido: “promovido” Núncio Apostólico em Washington!

Numa dessas cartas tornadas públicas, Viganò, amargurado, escreveu a Bento XVI: “Beatíssimo Padre, uma minha transferência provocaria desconcerto em todos os que acreditaram que fosse possível sanear tantas situações de corrupção e prevaricações, de há muito radicadas na gestão das diversas Direcções (do Governatorato)”.
Mas não foi ouvido.

Bertone, o senhor pode tudo, é indicado como o promotor dessa transferência. Bento XVI, talvez a fim de evitar fortes convulsões dentro da Cúria e transmitir uma péssima imagem da Igreja no mundo, assinou a transferência. Por essas mesmas razões, tem evitado tomar medidas drásticas que provoquem eco fora do Vaticano
Mas entretanto, as correntes pró e contra o Secretário de Estado entrechocam-se e não se poupam golpes rasteiros.

As explicações do Vaticano – Nota do Director da Sala de Imprensa da Santa Sé, Padre Federico Lombardi, a propósito de uma transmissão televisiva – não só demonstra certas incongruências, aludindo às acusações de Monsenhor Viganò, como não convence sobre as lutas de poder e outras anomalias dos homens da Santa Sé.

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O banco do Vaticano, “Instituto para as Obras de Religião” (IOR), é um manancial inesgotável de casos que brilham por falta de transparência. Naquele abençoado banco, o esterco do diabo beatificou-se e, como é óbvio, fecundou todo o tipo de escândalos financeiros, cada qual o mais obscuro: por exemplo, reciclagem de dinheiro e clientes que nada têm que ver com “as “Obras de Religião” ou clérigos, mas com a fuga de capitais ou evasão fiscal. As crónicas, nada edificantes, são vastíssimas acerca deste assunto.

Houve quem perguntasse se o Vaticano era a casa de Deus ou um ninho de corvos. A mim parece que, na Casa de Deus, mais que de corvos, há um ninho de víboras: chamam “corvos” aos delatores e difusores dos documentos que saem a jorros do Vaticano.

Bento XVI, embora não seja o alvo dessas polémicas, vê-se impotente. Nota-se a sua fragilidade, perante todas aquelas víboras que também fragilizam e ofendem a Casa de Deus.
Dada a sua idade, 85 anos, começou a uma luta pela sucessão. Que tristeza!

Muito mais haveria que dizer, mas, por hoje, fiquemo-nos por aqui e vejamos as consequências – ou não consequências - de toda esta ventania.

segunda-feira, junho 04, 2012

"O QUE NUNCA FALTA"

A esta pergunta respondeu, exaustivamente, o escritor e editorialista sobre economia e política internacional, titular de vários cargos de prestígio e espessura intelectual, Moisés Naím.
Num artigo intitulado “Se as Armas Nunca Faltam”, desenvolveu uma análise desapiedada sobre a loucura humana.

Seguindo o que se passa na Síria, uma matança horrorosa que não horroriza a Rússia, pois tem ali um bom mercado de armas, há dias recordei-me deste artigo que tinha conservado. È uma apreciável fonte de informações sobre este tema. Procurarei transcrevê-lo

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O que é que parece abundar nos lugares mais pobres e remotos do planeta? As armas.
Quando foi a última vez que uma guerra, uma revolta ou um movimento guerrilheiro cessaram, porque uma das partes em conflito teve escassez de armas? Nunca.
Onde há guerra, o dinheiro sempre comparece; e onde há o dinheiro, sempre comparecem as armas. E não comparecem somente onde há a guerra e onde há o dinheiro. As armas também abundam nos lugares mais miseráveis da terra.

Nos centros urbanos onde tudo falta e impera a carestia, onde as crianças não têm leite, os jovens não têm livros e a fome é uma coisa de todos os dias, o que nunca falta são as armas: pistolas, revolveres, fuzis, metralhadoras, lança-granadas, e outras armas portáteis são uma presença tragicamente comum, nos bairros pobres de todo o mundo.
Abundam também naquelas partes do mundo onde só existe fome, sede e morte. Nas aldeias e cidades do Sudão, do Iémen; nas florestas da Colômbia ou do Sri Lanka; nas montanhas do Congo, do Afeganistão ou da Chechénia falta tudo, mas não as armas: armas que, anualmente, provocam meio milhão de mortes.

A “Small Arms Survey” é uma iniciativa do centro de Estudos Internacionais de Genebra, especializada nas análises do comércio internacional de armas ligeiras. Os Investigadores da “Small Arms Survey” calculam que existam 875 modelos de armas ligeiras em circulação pelo mundo, produzidos por mil empresas em mais de cem países, num mercado que movimenta 7 mil milhões de dólares por ano.
Os entendedores concordam que o principal obstáculo para reduzir o massacre causado pela proliferação de armas portáteis é a falta de informações.
O anonimato na fabricação, a compra e venda de armas e o segredo bem guardado sobre a destinação, assim como as quantidades e tipologia das armas que são comercializadas, tornam mais difícil a aplicação de políticas capazes de mitigar o problema, obstaculando os esforços internacionais necessários para enfrentar uma ameaça que não respeita as fronteiras nacionais.
Com o fim da guerra fria e a celeridade da globalização, intensificaram-se duas tendências que tornam ainda mais complicado o problema das armas ligeiras e o acesso às informações: a proliferação e a privatização.
Hoje há mais fornecedores e compradores do que nunca e, em vez de Governos ou forças armadas regulares, predominam os adquirentes “privados”, como rebeldes, guerrilheiros, terroristas e bandos criminosos.

O incremento da oferta de armas é considerável: antes, as empresas que fabricavam armas ligeiras ultrapassavam de pouco a centena; hoje, são mais de mil e o número aumenta. Antes, localizavam-se num restrito número de países; hoje, em qualquer parte.
Antes, eram um apêndice dos governos, embora, formalmente, fossem empresas privadas.
Agora, o controlo dos governos ou das forças armadas sobre a produção de armas atenuou-se e há empresas internacionais que, de facto, agem de uma maneira absolutamente independente. Isto contribui para que os compradores de armas ligeiras de hoje possam contar com uma quantidade de fornecedores sem precedentes.

O mesmo sucede no que diz respeito á procura: o número de clientes e a solicitação de armas está a aumentar. Estranhamente, tudo isto sucede, precisamente no momento em que as guerras entre países diminuíram (a partir dos anos 90, os conflitos armados entre nações tornaram-se cada vez mais raros). Todavia, sucedo o contrário no que concerne os conflitos internos dos países e verificámos como aumentaram as guerras civis, as insurreições, os recontros armados entre facções políticas.
A primavera Árabe, por exemplo, produziu um choque de procura no mercado das armas ligeiras. Na Síria, antes da crise, um Kalashnikov poder-se-ia comprar no mercado negro por 1.200 dólares; agora, custa mais de 2.100.

Tudo isto não significa que os governos e as forças armadas regulares não continuem a ser os protagonistas do mercado internacional das armas ligeiras. Os Estados Unidos e a Europa são os maiores produtores e exportadores. Paradoxalmente, todavia, os Governos destes países são os que envidam mais esforços para conter o boom mundial deste tipo de armamento.
Estamos habituados à hipocrisia nas relações internacionais e, por vezes, a única consequência são os discursos aborrecidos sem efeito de relevo. Porém, no caso da indolência da comunidade internacional em relação à proliferação das armas ligeiras, dos países e das empresas que sobre elas ganham, a hipocrisia produz consequências letais.

Moisés Naim - La Repubblica - 27/03/2012