domingo, março 29, 2009

OMERTÁ MAFIOSA;
OMERTÁ NAS FAMÍLIAS


Creio que a palavra omertá já iniciou os primeiros passos para a sua adopção no vocabulário da língua portuguesa. Dado o significado e a larga extensão que pode abranger, enriquecê-lo-á.

È um termo de origem dialectal napolitana. Os dicionários definem-no como: Forma napolitana de umiltà (humildade) para a cega submissão às regras da «honrada» sociedade da Camorra.

Posto em prática, é uma regra férrea e facilmente traduzível: nada vi, nada ouvi, nada sei, não digo nada.

Acenando a Camorra, obviamente incluímos Máfia siciliana, a Ndrangheta na Calábria, Sacra Corona Unita na Apúlia.
A omertá é de rigor em todas estas organizações criminosas.
Infelizmente, é também de rigor sobre certas podridões, dentro das famílias normais.

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A notícia chegou a Portugal. É uma nova versão do horror da cidade austríaca de Amstetten. Agora, é a cidade de Turim o palco das taras sexuais dentro das famílias, das torturas que ninguém vê, dos abusos incestuosos que ninguém denuncia: a omertá no seu pleno significado!

Quando lia e ouvia o que noticiavam sobre o tremendo caso Fritzl, paralelamente ao asco cresciam as perplexidades: como foi possível que, em 24 anos, ninguém se apercebesse de uma qualquer anormalidade em relação ao que se passava no subterrâneo daquela maldita casa?
Não creio na inocência das pessoas mais próximas. A indiferença, pelo menos, foi rainha.

Numa zona periférica de Turim sucedeu outro horror não menos asqueroso.
Dos nove aos trinta e quatro anos, uma filha teve de suportar as continuas violações do pai, um vendedor de ferro velho.
Forçada a abandonar a escola aos doze anos, vivia absolutamente subjugada pela brutalidade do ambiente familiar.
Em 1994, tentou refugiar-se na casa de um tio. O “pai patrão” foi buscá-la, conduziu-a à polícia, a fim de que a filha denunciasse o tio por abusos sexuais. O tio negou e declarou que os abusos eram cometidos pelo pai da sobrinha.
Arquivaram a denúncia, porque uma perícia psiquiátrica classificou inatendível o depoimento da infeliz rapariga: “perturbação de personalidade dependente”!...
E o calvário prosseguiu por mais quinze anos.

Fugiu uma segunda vez para a casa de um irmão mais velho, casado. Este, um degenerado semelhante ao pai, estupra a irmã: exactamente como já fizera – e continuava a fazer - às próprias filhas de seis, oito, doze e vinte anos (esta última fugiu de casa e vive por conta própria).
Reduzida a um farrapo e sem perfeita consciência do que lhe acontecia, queixou-se ao pai do procedimento do irmão.
Para desviar as atenções dos seus próprios crimes, obrigou a filha a denunciá-lo à polícia.

A este ponto, a polícia e delegado do Ministério Público começaram a actuar com maior eficácia, predispondo interceptações telefónicas, além de microespias nas casas destas famílias.
A investigação durou meses. A verdade, finalmente, mostrou-se na sua inteira crueza: pai e filho foram presos. As vítimas estão confiadas a comunidades de recuperação.

Segundo declararam as autoridades investigativas, naquela família, por tradição, estava em vigor uma espécie de "jus primae noctis" do pai sobre as filhas – a mais velha estava prometida ao pai. Torpeza sobre torpeza!

Sobre este assunto, transcrevo parte de um excelente artigo de Lúcia Annunziata, no jornal La Stampa, de 27/03/2009

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Fritzl Vizinho de Casa

(…) O Tribunal austríaco, com alguma superficialidade, aliviou a consciência com um processo veloz. Na Itália, pelo contrário, nunca foi levado às barras do tribunal – se bem recordo – um pai que abusa das filhas.
A razão é clara: o primeiro responsável (não culpável, que é o que comete a violência) é o silêncio de todos aqueles que estão em condições de saber, mas que olham para o outro lado.
Penso no silêncio do resto das famílias, dos vizinhos, dos assistentes sociais, dos professores, mas, sobretudo, das outras mulheres destes homens violentos.
As mães, as tias, as primas que não podem não saber, aperceber-se ou reconhecer os sinais – nos lençóis, nos vómitos, nos alheamentos, nas depressões – desta imundície que se acumula em casa.
Porém, quando algum monstro chega aos tribunais, como no caso Fritzl, este outro universo feminino que viu e calou, nunca aparece. Ilibadas com um outro sociologismo de salão: «vítimas».
Estas mulheres - assim dizem - são vítimas, elas também, da mesma dependência dos monstros.

Pelo contrário, é este o ponto donde partir, a fim de que se desmantele a omertá que permite este crime: o silêncio das mulheres cúmplices.
É verdadeiramente vítima quem vê a violência e cala-se? É verdadeiramente vítima quem se presta a um dos mais odiosos crimes do mundo, a tortura?
Precisamente em nome da dignidade das mulheres, entendo que se deva, em casos como este, tirar-lhes qualquer justificação e levá-las a tribunal, exactamente como os monstros que pretendem encobrir.
Este envolvimento penal pode ser o momento de ruptura da cadeia. (…)

Não se pode dizer mais nem melhor.
Alda M. Maia

domingo, março 22, 2009

A BANALIDADE DOS MILHÕES

É impossível restar indiferentes, perante a informação sobre os milhões que os grandes dirigentes do mundo económico e financeiro meteram ao bolso, em 2007 – jornal La Repubblica de 18/03/2009.

Percorrendo a lista, só me perguntava: haverá trabalho, competências, responsabilidades, talentos que devam merecer estes vencimentos, bónus ou outras benesses?

Se qualquer alto funcionário tem um vencimento mensal de cinquenta mil euros, usufrui de um rendimento anual que cobre, amplamente, um elevadíssimo nível de vida.
Assim, tenho sempre muita dificuldade em compreender as relutâncias em propor ou determinar um tecto às compensações da classe executiva.
Se alguém apresenta essa proposta, imediatamente a classificam como impraticável: aos “talentos” não se deve pôr limites!

À falta de bom senso, à penúria de decência e ao desequilíbrio social quem põe limites?

Cito dois exemplos, da uma lista de 28, que La Repubblica publicou.
Primeiro exemplo: Josef Ackermann, Deutsche Bank, em 2007 recebeu 13,9 milhões de euros: mais de um milhão por mês.
Justificam-se estes milhões? A escassez de dirigentes da finança é tão grave que se tornou necessário abrir-lhes a caverna de Ali-Babá?

Segundo exemplo: na indústria automóvel, Luca Cordero di Montezemolo, presidente da Fiat, sempre em 2007, foi compensado com 7 milhões €!

Face à gravíssima crise que a todos assusta, Josef Ackermann reduziu os seus vencimentos de 60%.
Nesse sentido, o Presidente da Fiat também anunciou bons propósitos.
Fiquemos tranquilos: não os veremos a estender a mão à caridade.

Na mesma lista de La Repubblica, a fasquia dos emolumentos dos chefes executivos dos maiores bancos italianos oscilaram de 11 a 2,400 milhões de euros.
É inevitável a associação de ideias sobre o que afirmou, numa entrevista de 12/03/2009, o famoso jurista e especialista de Direito Societário, Guido Rossi.

(…) Recorda os “animal spirits” empresariais citados por John Maynard Keynes, na sua Teoria Geral?
O economista de Cambridge referia-se ao espírito livre que deveria inspirar a acção da actividade empresarial. Hoje, essa imagem sugestiva de Keynes provoca arrepios, se pensarmos na sua metamorfose.
A quem me quero referir? Não desejaria ser excessivamente cruel, mas hoje, se devo pensar nos “animal spirits” da nossa época, vêm-me ao pensamento os banqueiros.
nfelizmente, estes modernos “animal spirits”, sem nenhum controlo, impeliram a economia mundial para as margens do maior desastre dos últimos decénios.

(…) Como bem disse Warren Buffet, os bancos e os banqueiros inventaram produtos e instrumentos financeiros que se revelaram armas de destruição de massa. Há uma grave responsabilidade em tudo isto e não sabemos se jamais alguém pagará pelos danos que causaram ao sistema
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Os danos estão à vista. A grande massa de lixo financeiro – quais gigantescos e perigosos icebergues - anda por aí á deriva e não sabem como arrumá-la, sepultá-la, extingui-la, absorvê-la.

Mas entretanto, para que os “grandes talentos”, causadores desse lixo, permaneçam no lugar, alguém os premeia com bónus milionários.
Francamente, lendo o que se passou com a seguradora AIG americana, a náusea é obrigatória.

Sarkozy entende, e muito bem, que “os dirigentes de sociedades que põem em acto planos sociais e recorrem ao fundo de desemprego devem renunciar à parte variável dos seus ordenados”.
A Medef (confederação industrial francesa), porém, não entende limitar a liberdade das empresas na distribuição das compensações aos seus managers.
Vive la solidarité, la responsabilité, l’humanité! Mas tudo isto, como é óbvio, brilha por ausência, nos senhores da Medef.

Estes indivíduos, e similares, têm consciência da situação dramática das pessoas que ficam sem emprego?

Mas voltando ao princípio, e relendo a iteração dos milhões que envolvem, além dos já citados, Martin Winterworn da Volkswagen - 6,9 milhões; Dieter Zetsche da Daimler-Mercedes - 8,5 milhões; Aurun Sarin da Vodafone - 5,1 milhões, etc., etc., etc., estes milhões são de uma tal banalidade que ficamos com a sensação de que contar feijões ou euros, quase parece o mesmo.
Mas não é!
Alda M. Maia

domingo, março 15, 2009

MAS QUEM ESCREVE AS LEIS DE DEUS?

O caso da excomunhão dos médicos brasileiros que provocaram o aborto numa criança de nove anos, grávida de dois gémeos e violada, desde os seis anos, pelo padrasto, teve relevância nos jornais italianos.

Em Portugal, este facto mereceu menos atenção. Apresentaram a informação, dentro dos parâmetros dos casos estranhos, mas sem aprofundá-la. Creio que valia a pena!

Que uma criança seja violada, que meninas engravidem, desgraçadamente são barbaridades muito comuns.
Os tarados sexuais abundam; tornam-se mais asquerosos, se isso é possível, quando tais crimes se verificam dentro do ambiente familiar.

Este facto específico da criança brasileira ecoou com maior estrondo, devido à intervenção do arcebispo de Recife e Olinda, Dom José Cardoso Sobrinho.

Interveio com grande intensidade, a fim de que não se chegasse ao aborto. Seria um crime que a Igreja não poderia tolerar: assassinar-se-iam dois inocentes - o estupro praticado naquela criança era de secundária ou ínfima importância.

Os médicos, porém, entenderam que uma menina subnutrida, de nove anos, correria sérios riscos de não ter possibilidade de levar a gestação até ao fim ou de sobreviver a esta violência à sua tenra idade.

Nenhuma destas circunstâncias - e outras com elas relacionadas - incomodou o prelado, zelador extremo do respeito pelas “leis de Deus”.

Os médicos não obedeceram e reponderam apenas ao que a consciência de médicos lhes ditava. Com o consentimento da mãe e de acordo com o que a lei brasileira permite, num hospital público do Recife, interromperam a gravidez.

Chegou-lhes a excomunhão, assim como ao pessoal auxiliar, decretada por Dom José Cardoso Sobrinho: A lei de Deus deve estar sempre acima das leis dos homens. Quem faz o aborto é automaticamente excomungado. Não há crime pior que o aborto.

Lendo as informações que foram publicadas, há um aspecto que me chamou a atenção.
A criança vivia num ambiente de pobreza e dentro de uma família desagregada: a mãe separada do marido, convivendo com um desempregado de 23 anos, desde 2005.

Como a notícia da gravidez da menina saiu a público, o Sr. Arcebispo não se poupou a esforços, a fim de que várias autoridades interviessem, impedindo, a todo o custo, que abortasse.

O Senhor Arcebispo, previamente, teria dado lugar a tanta actividade, se alguém se tivesse preocupado em apoiar famílias como a desta menina?

Não seria mais coerente excomungar – já que tanto o atrai essa sentença – a política corrupta que bem pouco se esforça por atenuar a degradação social, a miséria que esmaga?

A teoria católica que a lei de Deus está acima das leis dos homens é um frequente leitmotiv das hierarquias.
Sempre me perguntei quem escreveu as primeiras: qualquer entidade divina ou elementos da humanidade, exactamente iguais aos que escrevem as leis terrenas, as leis que harmonizam uma convivência civilizada?

Os Doutores da Igreja, nos primeiros séculos, onde colheram os princípios ético-morais que forneceram esteios robustos às doutrinas do cristianismo?

Perante factos que indicam tragédia dentro de tragédias, mas que chocam contra os princípios “não negociáveis” da Igreja - o aborto, divórcio, defesa extrema da vida, mesmo quando esta depende de uma máquina – as hierarquias católicas não hesitam em usar uma linguagem dura, fria, impiedosa, como: assassínio, homicidas, etc. - o caso Eluana Englaro é paradigmático.

Esta rudeza inspira-se no que Deus espera dos pastores da Igreja? Ou, pelo contrário, as leis divinas sugerem compreensão, misericórdia, caridade… silêncio, quando a vida impõe à humanidade dramas cujas soluções não estão ao alcance das verdades que presumem absolutas?

O silêncio! Sobre o que aconteceu em Recife, como me agradaria o som do silêncio dos homens do Vaticano! Mas nem sempre afinam.
Padre Gianfranco Greco, responsável pelo Conselho Pontifício para a Família, esclareceu: o Código do Direito Canónico é muito claro, perante um aborto provocado.

Muito bem, se o diz o Código do Direito Canónico. Não pretendam, todavia, que as leis deste código sejam consideradas “leis de Deus” e se devam sobrepor às leis de um qualquer país democrático.
Até esse ponto, a minha inteligência recusa-se a acompanhá-los.
Alda M. Maia

domingo, março 08, 2009

A CADELINHA ECOLÓGICA
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Lilly, a cadela que sabe diferenciar o lixo (La Stampa)
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Todas as histórias de animais chamam imediatamente a minha atenção e dedico-lhes sempre o maior interesse e agrado.

O jornal La Stampa, de ontem, narra as proezas desta cadelinha de dois anos, Lilly, de San Donato Milanese, treinada a distinguir e seleccionar o lixo, colocando-o nos contentores adequados.

Escolhe o papel e deposita-o no bidão branco. Vai na direcção das latas de Coca-Cola, recolhe-as e coloca-as no recipiente de alumínio; selecciona com igual precisão garrafas de vidro, plásticos, etc.
Todas estas tarefas, obviamente, são uma brincadeira para a cachorrinha, segundo informa o dono.

Quinta-feira passada, dia 5, a “operadora ecológica” mostrou as suas habilidades, ante uma plateia de 500 crianças, alunos de escolas locais, “que estão a pôr em acção uma fase experimental de um projecto didáctico: a recolha do lixo diferenciado”.

Com uma tal “professora”, certamente que todas aquelas crianças ficarão sem quaisquer dúvidas de como proceder futuramente, dispensando ensinamentos retóricos.

Quando acenei ao meu gosto por histórias de animais, esta veio mesmo a propósito. Explico por qual razão.

A alguns metros donde moro, temos os três contentores normais para o depósito dos detritos seleccionados: papel, vidro, plásticos.

Junto destes contentores, a incivilidade de um grande número de pessoas é quase diária: cartões amontoados; sacas de plástico cheias de garrafas abandonadas por terra; vidros partidos e outros objectos depositados fora dos recipientes, enfim, uma indecência.

Várias vezes ouvi protestos contra os serviços da Câmara Municipal. Mais um modo incivil de sacudir responsabilidades. A Câmara não tem culpa da má educação dos munícipes. A única censura que posso mover-lhe é não aplicar pesadas multas a quem é sujo e não respeita o solo público.

Há dias, um rapazote de doze, treze anos, chegou perto dos tais contentores com um saco pejado de garrafas de vidro. Atirou, literalmente, com o saco e virou costas.
Naquele momento (eu vinha atrás), passava um senhor que, delicadamente, chamou-lhe a atenção e convidou-o a introduzir as garrafas dentro do contentor próprio.
"Meta-as bocê, se quiser" – responde o rapazelho.
O senhor, obviamente, indignou-se: -“Não sejas malcriado”
A resposta do rapaz foi imediata: “Vá para o c…” – o palavrão soou alto e claro.

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A escola está, de há tempos, desarmada. Não há instrumentos para impor as suas regras e os princípios nos quais acredita. Sofre, desde algumas décadas, da síndrome de debilidade congénita.
Aliás, uma certa parte dela - a mais ideologizada - fortemente assim o quis, com base na ideia que nunca se deva punir, que as notas não constituam uma arma e que seja mais aconselhável motivar, prevenir, compreender, justificar: jamais descer à vil ameaça da reprovação.


Por outro lado, a mesma clemência imbele adeja, hoje, nas famílias: tolera-se, medeia-se, desce-se a compromissos, pactua-se com os filhos. Não se admoesta, não se desanda um bofetão, não se manda ninguém para a cama sem o jantar.

Este é o preâmbulo de um artigo de uma professora – Paola Mastrocola – sobre o que sucede nas escolas e a má educação e arrogância reinantes no ambiente das crianças e adolescentes hodiernos.

Que se trate de uma professora italiana ou portuguesa, não penso que haja grandes diferenças entre o que se passa nas nossas escolas – ou dentro de muitas famílias – e o que se verifica na Itália ou noutros países europeus.

Das punições estúpidas e exageradas de antanho - ou espancamentos como descarga das tensões dos pais - passou-se ao endeusamento da criança.
Disciplina e regras de conduta sumiram-se.
Os resultados vêem-se nas respostas – mais próprias de um adulto de caserna – que o rapazito deu ao senhor que o aconselhava a introduzir as garrafas no lugar devido.

Voltando à cadelinha ecológica, que pena não termos cães adestrados como a cadelinha Lilly! As crianças ficariam encantadas de os ver em acção e a persuasão seria eficacíssima. Tenho a certeza que tudo fariam para os emular… e jamais deixariam sacos de lixo espalhados pelo chão.
Alda M. Maia

domingo, março 01, 2009

O REINO DOS CONSTRUTORES CIVIS
AS CONTENCIOSAS “PERMILAGENS”


Achei curioso o acórdão do tribunal da Boa-Hora versus um construtor civil: condenado com uma multa de 5 mil euros por “corrupção activa em acto lícito”.
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Sempre pensei que o termo corrupção pressupusesse, na sua inteireza, conotações negativas. Que seja corrupção em acto lícito ou ilícito, nunca deixa de ser, por si mesmo, um acto indecente e merecedor de uma pena severa.
Ademais, se o acto era lícito, que necessidade havia de percorrer vias proibidas, em vez de reivindicar os próprios direitos ou esclarecer razões?
Cinco mil euros de multa significam um brando puxão de orelhas com a recomendação: “Vê lá! Não faças outra!”
Decididamente, não compreendo nem quero compreender.

Este facto trouxe-me à memória uma outra faceta do modus faciendi de vários construtores civis, embora nada tenha que ver com o acórdão supracitado.
Quero referir-me, sobretudo (e denunciando mesmo), à ausência de regras no registo do “título constitutivo” da Propriedade Horizontal.

Por vezes, os construtores comportam-se com uma desenvoltura irresponsável, dando lugar a consequências que, se não são irreparáveis, apresentam-se de difícil solução e geradoras de graves causas de atritos.

A nebulosidade das leis, ou a irrealidade de muitas na aplicação prática, ajuda a que os interesses de uns, frequentemente, se sobreponham aos interesses do que será uma minoria anónima sem voz. E quando digo sem voz, aludo a um labirinto onde a voz do bom senso não encontra saída.

Este é um tema que, em fim de contas, podemos classificar de carácter social: pelas implicações económicas; pela convivência correcta e pacífica entre condóminos. Mas certos construtores civis fazem o que muito bem lhes agrada ou convém e não existem denúncias públicas sobre as consequências negativas que, dia a dia, estão sob os nossos olhos.

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Projectam-se prédios em regime de propriedade horizontal, procede-se ao acto notarial do “Título Constitutivo”, onde se indicam áreas, valores das respectivas fracções e as famigeradas permilagens.

Nesta segunda fase da existência do prédio, subdividido em fracções destinadas a serem postas no mercado, o construtor determina a criação de valores que, muito frequentemente, não somente são absurdos como estúpidos - não sei se ilegítimos!

Apresento um caso concreto - há outros semelhantes, na mesma zona - feito em 1992, salvo erro.

Imaginemos um prédio de quatro andares: dez apartamentos - os dois últimos em duplex - mais três fracções autónomas de aparcamento.

A fim de dar relevo às três fracções de aparcamento – fracções A, B e C – situadas no espaço destinado a garagem, a empresa construtora registou os seguintes valores:
Fracção A: 40 m2 com o valor de 480 mil escudos (12 mil escudos/m2) e representando 2% do valor total do prédio.
Fracção B: 10 m2 (dez), valor = 240 mil escudos (24 mil escudos/m2), percentagem =1%
Fracção C: 08 m2 (oito), valor = 240 mil escudos (30 mil escudos/m2), percentagem = 1%.
Um esclarecimento: na pavimentação das fracções B e C não se usou mármore ou quaisquer outros materiais de luxo, mas o pobre cimento de uma qualquer garagem sem pretensões!...

Daqui, é fácil imaginar as salsadas que guisaram com os restantes valores das "permilagens", distribuindo-os a olho, segundo explicaram, pelas fracções destinadas a habitação.

Atribuíram 7% a um T1. Os apartamentos T2 de 88,5 / 90,5 m2 - mais um de 76 m2 - foram arrumados com um valor único de um milhão novecentos e vinte mil escudos e a relativa percentagem de 8% do valor do prédio.

Sobravam 33%. Despacharam-nos para os dois apartamentos do 4.º andar em duplex, cuja área é de 157 e 161 m2, respectivamente.
Inventaram um valor, sem qualquer base que o justificasse, e atribuíram 16,5% a cada um.
Conclusão: um apartamento de 90,5 m2 corresponde a 8% do valor do prédio. Em condições exactamente iguais, uma área de 157 m2, no mesmo prédio, corresponde a 16,5%. Uns génios do cálculo!

Os atritos não se fizeram esperar. De um lado, o egoísmo e desonestidade de quem quer pagar o mínimo das despesas correntes, aproveitando-se destas anomalias; do outro, quem não aceita “permilagens” que se assemelham mais a uma extorsão legalizada do que a uma equidade obrigatória.

E agora pergunto: que raio de leis são estas que permitem semelhantes disparates? Que direitos são estes que, perante igual fruição das partes comuns, dão força de lei a discrepâncias com tais dimensões?

Como permitem "Títulos Constitutivos da Propriedade Horizontal" feitos sem qualquer lógica nem respeito pelo justo interesse e tranquilidade dos futuros proprietários?

Que faz o poder legislativo que não tem olhos nem orelhas para estes problemas da vida normal, não estudam certas leis de “direito teórico” que, na prática, constituem uma fonte incontestável de descarados abusos e iniquidades?

A resposta a quem sabe. Mas apercebo-me que existe tanta, muitíssima ignorância a propósito desta matéria! Ou interesses bem protegidos?
Alda M. Maia