domingo, setembro 28, 2014

“MANIFESTO POR UM PAÍS”
E SE TAMBÉM INVOCÁSSEMOS JESUS CRISTO?

Manifesto por um país” foi um belíssimo texto publicado, sexta-feira passada, no jornal Público. Transcrevamos o primeiro parágrafo:

 “Quem assina esta Manifesto expressa a sua indignação, seguramente partilhada por tanta mais gente, perante o aviltamento de Portugal e o empobrecimento da esmagadora maioria dos portugueses ao longo dos três anos da troika, e de então para cá. Esse aviltamento traduz-se no ousado enriquecimento de alguns, à custa da dignidade, dos direitos e do valor do trabalho, e consequente fragilidade e miséria na exploração de tantos”.

Os assinantes do Manifesto são várias dezenas – cerca de 61, salvo erro – e denunciam os nomes de ilustres personalidades portuguesas das mais diversas profissões, o que só infunde satisfação e encoraja aplausos.
Tive a surpresa e o prazer de ver o nome de um advogado famalicense. Bem-haja, Dr. Joaquim Louro… ou Loureiro? Erraram o apelido?

Incluo-me naquela “tanta mais gente” que se indigna, sobretudo com a falta de dignidade como a nossa coisa pública é tratada. Não sei perdoar a esta gente, em quem votámos confiadamente, que se arroga o direito de nunca explicar, com clareza, competência e honestidade, todas as medidas necessárias para conduzir o país fora do atoleiro em que precipitou. Enrolam-se em retóricas vazias, muito próprias do politiquês habitual, e nada de novo que possa alimentar esperanças e inspirar confiança.

Sempre entendi que, na administração pública, todas as dificuldades, crises e problemas resultantes de situações mal curadas e que se arrastam, se sacrifícios devem se impostos aos cidadãos, o primeiro passo é uma informação lúcida e objectiva. Seguidamente, uma exposição que todos compreendam e onde as soluções possíveis foram bem estudadas e ponderadas, segundo as realidades do país e jamais sob a imposição de troikas ou algo similar. Quando assim é, os sacrifícios enfrentam-se com mais coragem, compreensão e eficácia.
Desgraçadamente, tais comportamentos estão fora da política que actualmente se pratica, aqui e além-fronteiras.

Nos debates entre políticos, quanta pequenez e pobreza de argumentos! Exponho um exemplo. Não segui nenhum dos debates que foram transmitidos, sobre as primárias, entre os dois candidatos socialistas. Todavia, não descurei a leitura do que os jornais relatavam. Conclusão: omissão total, quer de Seguro, quer de António Costa, sobre um tema de enorme importância actual, isto é, o que diz respeito ao domínio esmagador da finança global na sua expressão mais reles: a finança puramente especulativa; somente o dinheiro a produzir dinheiro. Repulsivo!

Nenhuma política, digna deste nome e em qualquer parte do mundo, enfrenta e corrige estes movimentos financeiros, encaminhando-os para a sua natural função: que a finança seja, acima de tudo, a “infra-estrutura da economia real”.
Desta miserável ausência da acção política a nível global e que deveria ser assunto permanente de quem deseja exercer uma política séria e corajosa, ninguém fala, ninguém denuncia, ninguém ataca com determinação este fenómeno que tantos danos têm causado. Qual a razão ou razões? São facílimas de encontrar. A teia de vários interesses, sempre tão engenhosamente urdida, tudo explica.

O Manifesto de sexta-feira, “de forma a poder pôr fim a esta forma de austeridade que atinge os mais frágeis…”, sugere que sejam tomadas nove medidas, expondo-as claramente.

Todas compartilháveis, obviamente. Porém, com a gente que temos para as pôr em prática, política e administrativamente, serão factíveis? Terá essa mesma gente coragem, saber e diplomacia, (que também é necessária) para as levar ao fim, ampliando-as, se necessário?

Tenho muitas dúvidas. E cheguei ao ponto aonde queria chegar: à explicação daquele apelo ao "Senhor Jesus Cristo".

No passado mês de Agosto, Giovanni Calabrese, presidente da Câmara da cidade de Locri – Sul da Itália, Calábria – enviou uma mensagem Ao “Diviníssimo Senhor Jesus Cristo”:

“Dirijo-me a Ti, em última instância, por não saber a quem mais dirigir-me. Com grande respeito e deferência dirijo-me para invocar o Teu divino auxílio para ajudar-nos a resolver um problema atávico que aflige a Cidade da qual sou guia administrativo, porque escolhido pelos cidadãos o ano passado.
O maior problema da cidade de Locri não é somente a chamada ‘ndranghta, mas parte dos empregados da Câmara (…) Após um ano, sou constrangido a afirmar que só uma mínima parte dos funcionários trabalha em modo sério e honesto. (…) Antes de enviar-Te este meu pedido de ajuda, experimentámos tudo quanto era possível

Qual a culpa dos empregados do Município de Locri? Diariamente, de 125 funcionários que ali trabalham, apenas 25/26 se apresentam ao serviço. 
Relatando vários episódios que bem ilustram o fenómeno, o Presidente descreve todos os meios para pôr fim à praga do absentismo. Faliu. De nada lhe valeu recorrer ao Procurador da República, aos carabineiros, à Guarda Fiscal, etc., etc.

Ilustres Assinantes do Manifesto, visto que a confiança nos partidos que nos regem é escassíssima, à semelhança do apelo de Giovanni Calabrese, mutatis mutandis, não seria aconselhável também invocar o auxílio do “Diviníssimo Senhor Jesus Cristo”?

domingo, setembro 21, 2014

POR ESTA NÃO ESPERAVA!

Comecei a ler um artigo de Maurizio Ricci (La Repubblica- 20/09/2014) e quando entrei no segundo parágrafo, a atenção reduplicou: ia muito além das análises que ultimamente lemos sobre ao “modelo alemão”, sobretudo na esfera económica e organizativa.

Mudei completamente de ideias sobre o que desejaria escrever esta semana. Este artigo merece ser traduzido e transcrito.

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O Mito da austeridade afunda o crescimento alemão
“Enfastiados de ouvir enaltecer o milagre alemão? Cansados de ouvir dizer, frequentemente em alemão, que é necessário agir como a Alemanha? Aquilo de que se necessita, então, é assistir, sentando-se na primeira fila, a uma conferência de Marcel Fratzscher.

O presidente do DIW, Instituto Alemão de Investigação Económica, um dos  mais conceituados think-tank da Europa, normalmente inicia as suas conferências pedindo ao público para nomear um país que, de 2000 aos nossos dias, cresceu menos da média europeia.
Certamente Itália ou Portugal? Sim, mas a surpresa de Fratzscher é que o país a que se refere é a Alemanha. E o quadro que traça lança uma luz inquietante sobre o futuro próximo daquela que, até hoje, não é apenas a mais potente, mas também a única locomotiva possível de uma retoma europeia.

A Ilusão Alemanha” é o título que Fratszcher deu ao seu livro. Porque, como explica “Der Spiegel”, a Alemanha é uma nação “que se desmorona lentamente”: “A indústria vende maquinarias e automóveis de alta qualidade em todo o mundo – escreve o mais reputado semanário alemão -  mas se o reboco começa a despegar-se numa escola elementar, os pais devem fazer uma colecta, a fim de pagar um trolha. Em duas palavras: “Empresas e famílias sentam-se sobre um património de milhões de milhões, mas metade das pontes das auto-estradas alemãs tem uma necessidade urgente de consertos”.

É o efeito envenenado da austeridade que atinge os seus profetas. Efectivamente, o magnificado modelo alemão corre o risco de gripar-se por falta de um lubrificante fundamental da economia: os investimentos.
A doença do gigante europeu vê-se em dois números. Nos primeiros anos de 1990, o Governo e empresas investiam 25% do produto interno bruto em novas estradas, linhas telefónicas, edifícios universitários e fábricas. Hoje, é apenas o 19,7%.
Para manter o passo e não recuar, deveria investir, cada ano, uma quantia superior a 100 mil milhões de euros além do que já investe.
Dez mil milhões de euros deveriam ser aplicados exclusivamente na manutenção do que, uma vez, era um dos símbolos da Alemanha moderna: a grande rede das auto-estradas. O paradoxo é que o dinheiro existe, e em abundância.

As empresas alemãs têm em caixa mais de 500 mil milhões de euros que não gastam nem investem no estrangeiro. Em parte, porque insatisfeitas das infra-estruturas disponíveis hoje nos campos da energia, dos transportes, da escola. E quem deveria realizar aquelas infra-estruturas, isto é, o Governo, poderia pagá-las, endividando-se com uma inédita taxa de juros zero: o que actualmente rendem os títulos de Estado. Isto é, assegurar, praticamente grátis, o futuro da economia. E com este impulso à locomotiva alemã, também daria um salutar empurrão à inteira economia europeia.

É a obsessão da austeridade, o mito da paridade orçamental, a qual se deve atingir rapidamente e a qualquer custo, a impedir que isto aconteça.
O ministro das Finanças, Schaeuble, nestes últimos dias, confirmou a linha com a aprovação da Sra. Merkel e da CDU.

A novidade do livro de Fratzscher é que o autor, além de ser um conhecido economista, acaba de se tornar conselheiro para os investimentos do ministro da Economia, Sigmar Gabriel, líder dos sociais-democratas. E, a fechar a tenaz sobre Merkel e Schaeuble, chega o ataque do púlpito mais importante: Francoforte.

Sexta-feira, o site do BCE reproduziu com relevo um editorial escrito por um membro do executivo do BCE, Benoit Coeuré, e por um ex-membro e hoje ministro do Governo Merkel, Joerg Asmussen.
A Alemanha – escrevem Coeuré e Asmussen – pode usar um pouco dos seus excedentes orçamentais para apoiar os investimentos e reduzir os desequilíbrios tributários, embora preservando a sua posição orçamental sólida. Procedendo deste modo, também enfrentaria alguns dos seus futuros desafios económicos”.
Com tons um pouco mais circunspectos, as mesmas coisas tinha-as dito Draghi, nos finais de Agosto.

A batalha de Outono sobre a flexibilidade e a deflação na Europa talvez se combata num terreno inesperado.” - Maurizio Ricci; La Repubblica – 20/09/2014

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Acrescentar comentários? Apenas um: é mais que tempo de elevar a voz e exigir contenção e modéstia a quem pretende superintender – sempre em benefício próprio - nas questões europeias. Efectivamente, já é nauseante e cansativo.

domingo, setembro 14, 2014

HINO À IGNORÂNCIA

Como todos sabem, normalmente faz parelha com arrogância. Mas por que razão um hino a estas duas calamidades que estão a flagelar o nosso país?

Esclareçamos que é um hino autolaudatório. Doutro modo, como explicaríamos tantas decisões e intenções dos nossos governantes que só revelam uma desenvoltura em arrogar-se direitos que o bom senso e respeito pelo interesse geral repudiam? Como justificarmos tantos auto-elogios e tanta desenvoltura a atribuir, sempre, todas as culpas ou falhas aos precedentes governos?

Em primeiro lugar, a ignorância: abafa a sensibilidade; obscurece o raciocínio; expulsa a honestidade de reconhecimento dos próprios limites; encoraja a desfaçatez de decidir e impor o que ignoram, na total incapacidade de prever e avaliar os danos que podem infligir ao país.  
  
Em segundo lugar, a arrogância do eu posso e mando; ponhamos de lado o “eu quero”, pois, quase sempre, são os interesses instalados ou altos interesses que o impõem e a que eles dão aviamento. Por subserviência a quem concorreu para os instalar no poder, salvo as devidas excepções? Por interesse próprio? Por inconsciência? Por simples burrice? Escolha quem deve ou quem sabe.

Num artigo do professor Santana Castilho (Público de 13/08/2014), li a lista de vários erros pronunciados ou escritos por políticos com altos cargos. Tinha escutado muitas dessas calinadas, mas duvidei dos meus ouvidos, tão incongruentes se me apresentavam. Fiquei então com a certeza que não ouvira mal.
Vejamos: o Sr. Presidente da República que diz “cidadões” em vez de cidadãos. Também diz “duzentas” gramas em vez de duzentos, além de outros “lapsos” (chamemos-lhes lapsos!...).
O Primeiro-ministro que diz “sejemos” em vez de sejamos.
A lista é longa, mas esta do “sejemos” apresenta-se indigerível para qualquer compreensão. Só me pergunto que tipo de instrução primária tiveram estes senhores e como se impuseram na política, esfaqueando deste modo a língua materna. Porém, fosse esta a pior agressão!
Mas passemos a coisas sérias, pois estas, também são sérias, mas confundem-se demasiado com o caricato e o anedótico.

A Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC) determinou o arquivamento da classificação das 85 obras de Joan Miró, cuja abertura de procedimento tinha sido ordenada pelo tribunal do Círculo Administrativo de Lisboa, depois de um processo aberto pelo Ministério Público. Isto significa então que a colecção não vai ser classificada e o leilão deverá acontecer em breve”. (Público de 30/08/2014).

Insisto sobre o mesmo tema: recuperar ou não recuperar os créditos do BPN, neste caso é inadmissível, é ultrajante para o Património Cultural abdicar de 85 obras de um grande pintor universal. Paralelamente, é mesquinho e de vistas curtas ignorar que a posse deste espólio é uma grande mais-valia para o nosso património artístico, mesmo em termos económicos. Tenho a certeza que um qualquer outro país, com menos ignorantes na Administração Pública, jamais permitiria uma alienação deste teor. Muito menos quando lhe é atribuída o valor de 35 milhões de euros, quando uma quantia equivalente se poderia arrecadar através de outros meios.  

Com o contínuo aumento da despesa pública, onde, presentemente, os ajustes directos são a norma, Portugal perdeu a dignidade e o respeito por outros valores, tornando-se tão miserável que já nem sabe distinguir o que o enobrece daquilo que o amesquinha, mesmo no equilíbrio financeiro.

E para finalizar, não posso deixar de aludir a uma aberração que se está consumando no campo da Investigação Científica. São incríveis as decisões eliminatórias de óptimos centros de investigação actuadas pela “Fundação para a Ciência e Tecnologia” (FCT) e que os nossos cientistas não cessam de explicar, condenar e denunciar.
Que fundação é esta?!
Um dos piores exemplos desta tragédia – sim, uma tragédia para o desenvolvimento do país – foi o empurrão para fora de Portugal de “ um dos maiores especialistas mundiais em cibersegurança”, Paulo Veríssimo, que aportou a Luxemburgo.

A famigerada FCT chumbara o seu laboratório de investigação LaSIGE da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, reduzindo o financiamento anual a 7500 euros. Melhor dizendo, decretando a asfixia de um centro de investigação classificado como um dos melhores a nível internacional. 
A Universidade do Luxemburgo propôs-lhe um contrato quinquenal, com cinco milhões de euros de financiamento, a fim de desenvolver “um projecto estratégico de uma grande capacidade de investigação de topo, a nível internacional, na área de segurança e confiabilidade das infra-estruturas de informação e críticas” (palavras de Paulo Veríssimo).

Quando nos informamos do que significa cibersegurança e a leviandade como isto foi e é considerado; quando todas as informações sobre a excelência da nossa investigação científica chegam ao nosso conhecimento e verificamos que é a ignorância e o espírito mercantil dos dirigentes nacionais a impor directivas execrandas, como nos devemos sentir? Indignados? Enojados? Revoltados?

Eu sinto-me revoltada, indiscutivelmente, mas revoltada, acima de tudo – e não me canso de o repetir – contra as nossas elites com uma séria formação moral, científica e intelectual que não concebem entrar em conflito, pacífica e ordeiramente, contra este estado de coisas. Não basta criticar; é necessário elevar a voz e usar todos os meios que uma verdadeira democracia  sugere. Pelo menos, gritem e indiquem alternativas.
Com estes exemplos, quando e onde esperam que o país afunde de vez?

domingo, setembro 07, 2014

O OCIDENTE AMEAÇADO

Captou-me, em absoluto, a leitura do editorial de Ezio Mauro, director do quotidiano La Repubblica, de sexta-feira passada e cujo título é: ”Defender o Ocidente”. Achei-o interessantíssimo e decidi transcrevê-lo, embora parcialmente, dada a sua extensão. Os sublinhados são meus.

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“DEFENDER O OCIDENTE”
“A terceira NATO nasce em Gales depois da primeira, filha da Guerra Fria; a segunda, da idade do meio, quando com a queda do Muro pareceu abrir-se um longo século já sem inimigos para as democracias que reconquistaram o Novecentos.
A guerra de Crimeia traz de novo para o coração da Europa, onde nasceram duas guerras mundiais, tropas, mísseis, carros armados, mortos, feridos, aviões abatidos. Recomeçamos a olhar para os nossos céus e os nossos mapas com aquela mesma inquietação pelo futuro dos nossos filhos que os nossos pais tinham conhecido muito bem, mas nós ainda não.
E dos arsenais da política, da cultura, da diplomacia e da estratégia militar reaparecem, juntamente com os velhos medos, os conceitos esquecidos das “zonas de influência”, dos “blocos”, das “exercitações”, dos Muros, das fronteiras europeias entre Ocidente e Oriente, com o Oeste que reencontra o seu Este e o Kremlin fixo, novamente, na parte do “inimigo hereditário”.

Medimos com igual inquietação as incursões de Putin nas fronteiras ucranianas e a sua popularidade crescente em pátria, não obstante as sanções.
Descobrimos o que deveríamos saber, isto é, que a alma imperial e imperialista da Rússia é eterna e insuprimível, portanto, não é uma criatura ideológica do sovietismo, mas precede-o, acompanha-o e sobrevive-lhe. Bem pelo contrário, depois dos anos de interregno, com o punho de ferro interno e a repartição oligárquica do espólio de Estado, o Oriente russo torna a marcar uma identidade forte, uma soberania territorial e política que, enquanto se reapropria da Crimeia, não esconde veleidades sobre Kiev e tentações sobre os países bálticos, como se Moscovo se rebelasse à história e à geografia de início do século, contestando-as e impugnando-as perante a sua obsessão reencontrada: o Ocidente.

No mesmo instante, o califado islâmico, acabado de autoproclamar-se entre a Síria e o Iraque, ainda não tem um verdadeiro Estado, uma capital, um sistema de relações, mas um punhal apontado à garganta de homens escolhidos para simbolizar, no próprio martírio individual, uma espécie de desafio universal que vai muito além do espectáculo de morte do 11 de Setembro.
A morte encenada como uma mensagem extrema à potência americana, perante todo o mundo, qual rito primitivo do fanatismo religioso e marketing moderníssimo do deserto. (…)

Construir com o terror o Califado significa, sobretudo, cancelar todos os riscos de contágio democrático, ainda que parcial, nos países islâmicos, todos os institutos ainda antes de qualquer instituição, em nome daquele “isolacionismo” que Bin Laden predicava e ameaçava, a fim de expulsar da península muçulmana “os soldados da cruz” com os seus “pés impuros” nos lugares sagrados. Consequentemente, o inimigo definitivo torna-se claro: é o Ocidente.

Mas no momento em que duas partes do mundo o designam, contemporaneamente, como inimigo final e adversário eterno, o Ocidente tem uma noção e um conhecimento de si mesmo à altura do desafio?
Tem pelo menos consciência daquele punhal islamita apontado à sua garganta, enquanto Putin está a reerguer um muro político e diplomático que trave a América, delimite a Europa e bloqueie a liberdade de destinos dos povos?

A resposta da política é inconcludente, a da diplomacia não vai além das sanções. Resta a NATO, o vértice do País de Gales, a polémica sobre as despesas, o projecto de exército europeu. (…)

Durante o breve espaço “de paz”, o qual vai da queda do Muro até ao 11 de Setembro, deixámos definhar, com as nossas próprias mãos, o conceito de Ocidente, enquanto outros trabalhavam para construí-lo como um alvo imóvel. Desvalorizámo-lo como um achado da guerra fria e não como um elemento da nossa identidade cultural, institucional e política, quase como se fôssemos definidos somente pelo adversário soviético e apenas pelo tempo da sua duração.
Também os abalos geográficos na Europa Central - seguidos pela queda do bloco soviético - e as propostas de alargamento da União Europeia foram geridas com parâmetros mais económicos, de mercado e de potência que ideais.

Aquele pedaço do Ocidente que se chama Europa pareceu incapaz, por longo tempo, de ter uma ideia de si mesmo que não derivasse da diferença no confronto com o comunismo oriental; quando o sovietismo caiu, mostrou dificuldade em definir-se, conceber-se como terra onde nasceu a democracia das instituições e a democracia dos direitos. Eis a razão da comunidade de destino – e não somente de aliança – com os Estados Unidos, assim como as razões específicas que a Europa traz neste pacto, isto é, o respeito pelos organismos internacionais de garantia e das regras de legalidade internacional. Para uma aliança democrática (mesmo quando é guiada por uma Superpotência) valem sempre. (…)

Hoje, devemos considerar (se não tivesse sido suficiente o 11 de Setembro) que não é somente a América o alvo, mas também este nosso conjunto de valores e este nosso sistema de vida feito de liberdades, de instituições, de controlos, de regras, de parlamentos, de direitos. Contemporaneamente, também pelas nossas incongruências, misérias, erros, abusos e violências, porque somos humanos e porque a tentação do poder é o abuso da força. (...)

Eles têm o terror de tudo isto, não obstante o nosso testemunho infiel da democracia e o mau uso das nossas liberdades: manifesta-o Putin com a sua soberania oligárquica; manifesta-o, radicalmente, o Estado Islâmico.

Mas nós, estamos em condições de defender estes nossos princípios e de crer na sua universalidade, pelo menos potencial? Ou, pelo contrário, estamos disponíveis a admitir que, por realpolitik, direitos e liberdades devem ser proclamados universais nesta parte do mundo, mas podem ser anunciados como relativos noutras partes? Em resumo, estamos dispostos a defender, verdadeiramente, a democracia sob ataque?
O desafio também está no interior do nosso mundo, porque no afastamento da política e das instituições dos cidadãos do Ocidente, existe a percepção de que se tornaram instrumentos inúteis, perante a grande crise económica e as crises locais abertas no planeta. (…)

Hoje quebrou-se a tábua de contrapesos dos conflitos, a ligação social entre o rico e o pobre, a responsabilidade comum de sociedade. (…)
Paralelamente, uma parte sempre mais larga da população tem a sensação, ante a crise, que o mundo esteja fora de controlo. Isto é, que o sistema de governance que, fatigante e orgulhosamente nos concedemos no longo pós-guerra, encravou e não produza governo dos fenómenos em acto.
 Pela primeira vez bloca-se aquela permuta entre o cidadão e o Estado feito de liberdade e direitos em troca de segurança.

Sentimo-nos cidadãos dentro do Estado nacional, mas percebe-se que o Estado nação já não controla nenhum dos fenómenos que contam na nossa época, não produziu instituições e democracia naquele espaço supranacional dos fluxos financeiros e informativos onde, e não por acaso, a nossa cidadania - o nosso exercício subjectivo de direitos – é puramente formal. 
Das instituições supranacionais que estão mais perto de nós (a União Europeia) sentimos nitidamente o défice de representação e, portanto, de democracia.

Temos nos bolsos uma moeda comum sem saber qual é a face do soberano nela impressa, sem uma autoridade capaz de gastá-la politicamente nas grandes crises do mundo, sem um exército que a defenda. Por fim, da Europa sentimos o vínculo, certamente, mas não a sua legitimidade. (…)

A própria América, que deveria ser a Superpotência sobrevivente do Novecentos e, consequentemente, hegemónica, adverte a crise da sua governance, precisamente quando a eleição de Obama tinha manifestado toda a energia democrática daquele país (…)

Porém, no momento em que, quebrando o unitarismo de Bush, Obama, depois de ter oferecido em vão o diálogo com o Islão, coloca a América fora das guerras no terreno, fechando uma época. A democracia americana descobre-se desarmada e com dificuldade de traduzir a sua força política. Vê Moscovo rearmar-se e Pequim a lucrar vantagens competitivas à sombra das crises que investem, directamente, Washington.

É como se estivéssemos a testar os confins da democracia, quase já não conseguisse produzir representação, governo e instituições capazes de responder às exigências da época. Como se fosse uma construção do Novecentos que chegou exausta a este perigoso início do século XXI.

Não seria o fim de uma ideologia, mas de todo o fundamento do Estado moderno, de uma cultura política, de uma identidade.
Por esta razão, o Ocidente deve ser defendido, com todos os meios, de quem o condena à morte.

Também Putin deveria reflectir sobre o desafio islamítico, perguntando-se por quem os sinos dobram. Talvez recuperando, nos arquivos do Kremlin, a carta que o ayatollah Khomeini escreveu ao último secretário-geral do PCUS, em Janeiro de 1989:É claro como cristal que o Islão herdará as Rússias”.
Ezio Mauro -La Repubblica  -  05/09/2014