segunda-feira, fevereiro 28, 2011

NA REALPOLITIK É IMPLÍCITO O CINISMO?
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Berlusconi beija a mão de Kadhafi - Março 2010

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A pergunta é ingénua. Se nas relações entre Estados, vige, acima de tudo, a preservação dos interesses mútuos, isto é, o lado útil e prático dessas relações, certamente que a dose necessária de hipocrisia e cinismo será inevitável.

Nenhum país é imune de tais situações. Mantém-se relações com todos os países democráticos; estabelecem-se relações com estados não democráticos que são produtores e fornecedores de matérias-primas indispensáveis, por exemplo, ou, então, por uma mera razão de relações entre estados.

Normalmente, é posta em prática uma ética especial nas negociações que resultam prósperas e benéficas para a economia e segurança dos diversos países. Se assim não fosse, como justificaríamos a aplicação, na política, de uma actividade diplomática estribada no conceito de Realpolitik, quando se deve tratar com regimes totalitários ou ditaduras da pior espécie?

Em conclusão, a realpolitik é prática comum. A distinguir essa prática, existe apenas o grau de elegância e o comedimento como é aplicada. É neste aspecto, portanto, que ressaltam os exageros, as atitudes subservientes e inoportunas.

A revolta inesperada na Líbia deu azo a críticas contra quem distribuía sorrisos e palmadinhas nas costas daquele demente sanguinário que a dominava.
Nos estados europeus, quando Kadhafi era o todo-poderoso, houve algum dirigente que se distanciou dessas manifestações amistosas? Não creio.

Se tais manifestações de cordialidade se mantiveram dentro de uma cortesia diplomática, considero as críticas actuais bastante hipócritas.

Infelizmente, houve quem tivesse ido muito além dessa dignidade de Estado e tivesse optado por inoportunos salamaleques que o ofendiam. A foto acima reproduzida é bem eloquente.

Até aqui, segui o raciocínio do realismo político. No entanto, não significa que o aprove incondicionadamente. Pelo contrário, repugna-me.

Se acima de qualquer outra consideração, colocássemos o respeito pelos direitos humanos, o culto da dignidade humana, a defesa da igualdade de circunstâncias e de cidadania, não creio que os interesses económicos ficassem emperrados ou sofressem reveses.
Haveria menos totalitarismos, pois, automaticamente, estes seriam votados ao ostracismo – um ostracismo real e não de ostentação - pela generalidade dos países que não admitem cidadãos súbditos ou sufocados, na sua liberdade, por qualquer sátrapa ou ditador tipo Kadhafi.
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Devo compreender que navego no mar da utopia, mas não desisto.

Quanto à eloquência da foto de Berlusconi que beija a mão de Kadhafi, não foi á única atitude aviltante, embora o pior.

Nas visitas oficiais de Kadhafi a Roma – em Junho 2009 e Agosto 2010 - quanta palhaçada e que baixeza de cortesania da parte do governo que o hospedava!
Seria longo descrever os episódios degradantes a que se assistiu, no show histriónico do indivíduo que hoje todos condenam, mas esquecendo que sempre demonstrou uma barbárie sem freios.

Alguns pormenores, lidos no Corriere Dela Sera: Restauros no palacete e parque Doria Pamphili por 994.923 euros, em 2009, a fim de hospedar a proverbial tenda do hóspede.
Foi-lhe consentido uma “lição da sapiência” (dá vontade de rir!) na Universidade “La Sapienza” de Roma.

Vejamos a sapiência do homem: “A democracia é uma palavra árabe que foi lida em latim. Democracia: demo quer dizer povo; cracia em árabe significa cadeira. Assim, o povo quer sentar-se nas cadeiras […] - fiquemo-nos por aqui!...

Na visita de 2010, uma agência especializada contratou 500 raparigas (70 euros cada) para serem recebidas por Kadhafi, na residência do embaixador líbio, onde lhes ministrou uma lição de islamismo. «O islão deveria tornar-se na religião de toda a Europa»

Entretanto, os chorudos negócios entre Líbia e Itália galoparam; os investimentos de fundos soberanos líbios são múltiplos e avultados.
Dois exemplos: possui 7,5% do capital da famosa Juventus. Em dois anos, a Líbia tornou-se no maior accionista do primeiro banco italiano, Unicredit, com cerca de 7% - quem diz Líbia, diz Kadhafi, os oito filhos, mulher e demais familiares.
Penso que o cinismo, nesta realpolitik, tivesse ido muito além daquela dose inevitável.

Aguardemos o desfecho da tragédia líbia e oxalá que a Europa saiba ajudar, sensata e equilibradamente, aquele povo a virar página.

Alda M. Maia

segunda-feira, fevereiro 21, 2011

OS 150 ANOS DA UNIÃO DE ITÁLIA

No próximo dia 17 de Março celebrar-se-ão os 150 anos da união de Itália.
Precisamente em 17 de Março de 1861, foi proclamado oficialmente o Reino de Itália, em Turim, palácio Carignano, sede do primeiro parlamento da Itália unida.

Em qualquer país seria um evento histórico que se comemoraria com uma participação total e com o entusiasmo que a data merece. Mas em qualquer outro país não existe um partido que se chama Liga Norte, o qual não esconde projectos secessionistas e demonstra desdém por tudo o que se situe fora da imaginária Padania. Logo, falar de união da Itália é como fumo nos olhos, obviamente.

No mundo da política italiana, actualmente, verificam-se anomalias de tal modo inconcebíveis que se torna dificílimo desviar a atenção do que vai sucedendo, dia após dia.
Observadora externa, mas com o coração preso a tudo o que concerne o país Itália, não sei compreender, não sei explicar, muito menos desculpar esse estado de coisas.

Mas continuemos. Já de há muito tempo que se preparavam estas comemorações. Todavia, como a Liga Norte faz parte da coligação de governo, este hesitava a declarar feriado nacional o próximo dia 17 de Março.

Entretanto, não faltaram opiniões tão estúpidas como inaceitáveis: um feriado que interromperia a actividade produtiva, criar-se-ia um fim-de-semana prolongado, inoportuno nestes momentos de crise económica, etc. – assim se pronunciou a presidente da Confederação Industrial, e não foi a única.
Por sua vez, a ministra da Educação entendia que as escolas não deveriam fechar. Comemorar-se-iam a os 150 anos durante as aulas. Os directores escolares imediatamente disseram que não haveria aulas.

Finalmente, sexta-feira passada, o governo emanou um decreto que proclama feriado nacional o próximo 17 de Março. Os dois ministros da Liga Norte presentes, todavia, abandonaram a reunião de ministros e não votaram. O terceiro, ministro da Administração Interna, nem compareceu.

O sólito Calderoli, que faz parte do trio, declarou que esse feriado era uma “loucura e um acto anticonstitucional”.
Pobre Itália, em que mãos caíste!

O homem saberá distinguir o que são actos anticonstitucionais? Não, não sabe. Aliás, toda a corte que presentemente ocupa o governo italiano tem ideias muito sui generis sobre a Constituição. Esta, para o chefe e respectivos cortesãos, não passa de um empecilho.
Mas não foi sobre a Constituição do Estado italiano que estes ministros juraram, quando tomaram posse? Onde está a coerência e a dignidade?

E já que aludo à falta de coerência e dignidade, acrescento credibilidade e ausência total de sentido do ridículo.

[…] O que acima de tudo avilta, não nós que mantemos no peito o sentimento da nação, mas as instituições que deveriam representá-la, é o comportamento daqueles 315 parlamentares – isto é, 320, depois da última transumância – que votam a comando as propostas mais incríveis, mais desatinadas e mais conceptualmente impudicas que jamais foram apresentadas nas aulas parlamentares.
Afirmaram como verdade revelada que o telefonema vergonhoso de Berlusconi à Questura
(central da polícia) de Milão para libertar a “sobrinha de Mubarak” foi o acto de um homem de Estado que queria e devia evitar uma grande crise internacional. […] – Eugénio Scalfari, La Repubblica de ontem.

Como defesa contra a acusação de abuso de poder, alega que só o “tribunal de ministros” o deve julgar. Telefonou à polícia para libertarem a prostituta Ruby, de idade menor, no exercício das suas funções, a fim de evitar um incidente diplomático. A mocinha era “sobrinha de Mubarak”!...
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Como todos os pormenores deste caso foram amplamente descritos e com circunstâncias graves e incontestáveis, é inaudito como todos os parlamentares que o defendem repetem fielmente as mentiras mais despudoradas que só Berlusconi sabe pôr na praça, com a ajuda dos seus advogados, também eles eleitos no parlamento.

Mais uma vez foge ao enésimo processo. Será sem audiência preliminar, o que não lhe dará tempo para a emanação de novas leis que o ponham a salvo.

Exigindo o tribunal de ministros, sabe que este tribunal especial não pode iniciar o processo sem antes solicitar a autorização do parlamento. E como espera que a sua maioria a não concederá, espertezas e manigâncias processuais estão já em marcha.

segunda-feira, fevereiro 14, 2011

SE NÃO AGORA, QUANDO?
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Manifestação das mulheres contra Berlusconi, em Roma


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Se non ora, quando?” – Se não agora, quando?
Este foi o lema escolhido por centenas de milhares de senhoras italianas para a manifestação anti-Berlusconi de ontem em Roma e em muitas outras cidades do País. Inspiraram-se no título do conhecido livro de Primo Levi.

A confluência na "Piazza del Popolo", em Roma – onde se organizou a manifestação símbolo – foi maciça, imponente, como o demonstra a foto acima reproduzida.
Todavia, verificou-se o mesmo espectáculo nos principais centros de tantas outras cidades, quer no Continente, quer na Sicília e Sardenha.
Não foram consentidas bandeiras ou quaisquer outros emblemas das facções políticas. Foi uma manifestação transversal, onde predominavam as écharpes brancas das senhoras e o entusiasmo.
Observando as reportagens sobre estas manifestações pacíficas e bem organizadas, nas diversas cidades, fiquei impressionada com a afluência de tanta gente: mulheres, homens, muitos jovens, crianças.

Assistimos a um novo fenómeno. Perante a ausência de líderes capazes e com a coragem das ideias, as massas sublevam-se com vigor e originalidade, saem para as ruas e gritam a sua indignação e descontentamento.

No Norte de África, vimos os resultados. Na Itália, uma democracia verdadeiramente em perigo vê as suas instituições diariamente esvaziadas por uma maioria sem o mínimo sentido de Estado, sem ética e sem vergonha.
Mas também aqui, a oposição brilha por fragmentação e estúpidos pessoalismos.
Foram as massas que se organizaram e protestaram contra um modo de fazer política que envergonha e prejudica o País.

E foi necessária a indignação feminina para que as ruas se enchessem e a sociedade civil, finalmente, começasse a despertar de uma apatia incompreensível.

É a esta maioria de ocupadores do Estado que atribuo a responsabilidade e as piores culpas do que, presentemente, acontece na Itália.
Criou um muro granítico à volta de uma espécie de líder, Berlusconi, que nunca deveria ascender ao lugar de primeiro-ministro ou qualquer outro cargo institucional, e por razões bem claras que todos conhecem.
Mas como foi este indivíduo - com os seus potentes meios económicos e mediáticos - quem, praticamente, escolheu essa maioria e, portanto, lhe garante posições rentáveis, defendendo-o, automaticamente defendem os interesses venais que os motivam.

O bizarro sistema eleitoral actual, inventado e votado pela maioria parlamentar de Berlusconi, em 2005, classificado pelo seu inventor, Calderoli da Liga Norte, como “Lei Porcata” (não necessita de tradução) deu origem ao tal muro granítico acima referido.

Bastam duas características para, efectivamente, classificá-la como uma porcaria.
Primeiro ponto: o eleitor vota a lista dos candidatos sem a possibilidade de indicar preferências - este sistema, infelizmente, também se verifica nas eleições portuguesas.
São os partidos quem escolhe e estabelece as respectivas graduações. Obedientemente, votamos o que os partidos impingem.

Segunda característica da “lei porcata” - esta, sim, verdadeiramente aberrante – é o “prémio de maioria”.
Á coligação que obtiver maioria relativa ser-lhe-á garantido um mínimo de 340 assentos na Câmara dos deputados. O número total é de 630 membros.

Uma coligação com uma maioria relativa de 35%, por exemplo, reinará no Parlamento.
Quando me falam que Berlusconi tem a maioria do País, conhecendo a “lei porcellum” (assim baptizada por Giovanni Sartori), sei de antemão que a maioria dos eleitores italianos não está com aquele indivíduo nem nunca esteve.

Não resisto à tentação de transcrever alguns slogans do que os numerosos cartazes de ontem exprimiam: sarcasmo, ironia, insultos, indignação.

Em resposta aos sistemáticos ataques de Berlusconi à magistratura:
«Eu estou com os Ministérios Públicos, velho porco com o “rabo flácido”».
«Ainda bem que a Magistratura existe!».
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Não à pornocracia. Indignemo-nos».
«Não é um País para velhos putanheiros».
«Melhor gay que velho porcalhão».
«É carnaval, mas os artistas estão no Governo».
«Berlusconi, presta um serviço à humanidade: demite-te».
«Pela dignidade das mulheres, demite-te».
«Bastava não votá-lo»

Quanto a demissões, aquele homem pouco ou nada compreende: falta-lhe pundonor, dignidade e qualidades políticas para dar esse passo e não comprar votos, a fim de enfrentar moções de censura, como fez ultimamente.

Mas se não agora, quando? Penso que só as urnas o dirão.
Alda M. Maia

segunda-feira, fevereiro 07, 2011

E AGORA, ISRAEL?

Sabe-se como iniciou a rebelião popular, donde partiu o primeiro rastilho, como se propagou até ao Egipto e como aqui deflagrou com um estrondo que abalou tantas convicções. Ainda bem!

Não se sabe que rumos políticos, democráticos, constitucionais, mas sobretudo equilibrados, saberão encontrar os responsáveis egípcios.
Oxalá sejam os direitos humanos e os anseios das classes menos privilegiadas os principais motores das reformas que se impõem.

A Irmandade Muçulmana – um dos papões que assustam o Ocidente – tem sido cauta, embora classificada como a facção política mais bem organizada do Egipto.
Cálculos de quem entende insinuar-se nas negociações, usando maneiras mansas e, em seguida, impor as suas directivas? Ou, pelo contrário, pessoas responsáveis e respeitadoras de um Estado laico, onde todos usufruem de direitos iguais?
Não esqueçamos que grande parte dos seus filiados exerce profissões liberais, predominando os médicos. Tem obrigação, portanto, de não cair em fundamentalismos estúpidos e mais próprios de quem milita na ignorância.

Esclareceu que entende distanciar-se do regime islâmico do Irão. Esperemos que persistam nesse bom senso, pois a revolta popular foi bem clara nos seus motivos e em nada encorajou fundamentalismos ou ódios fora dessas razões.

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Estado de sublevação geral no Egipto, grande preocupação em Israel. Quem sabe se não será salutar e contribua a estilhaçar a arrogância de tantos dirigentes israelianos e a cegueira da população que os vota?

E agora, Israel? E agora que a maior fronteira com quem viviam em paz se tornou num ponto de grande interrogação? Que iniciativas sensatas devem ser tomadas, finalmente?

Seguindo todas as informações, frequentemente sou assaltada por uma ideia que muito desejaria se tornasse real.
Gostaria que aquela grande parte de israelianos que querem a paz, que nutrem respeito e solidariedade pelos palestinianos sem direitos, colhessem o espírito da revolta egípcia e tunisina, embora com outra finalidade, viessem para as ruas, em massa, e exigissem uma completa mudança na classe política e na política de conciliação.

O direito de viver em paz e reconhecer as razões dos outros é sempre um excelente motivo para uma sacrossanta revolta contra quem se alcandora na defesa de interesses que já não justificam a segurança e o direito à existência de Estado de Israel, por muito que desejemos e pretendamos esse direito.

Anteriormente, dir-se-ia que predominava a indiferença sobre a questão palestiniana, visto que tudo estava calmo e a força do exército dava segurança.
O estado de sonolência terminou abruptamente e o despertar deve ser de uma grande inquietação para quem até hoje fechou os olhos e adoptou numa situação de paz sem paz, mas insustentável no tempo.

Acomodar-se por anos e anos sobre a conservação do status quo, a política dos adiamentos, o sistemático esquivar-se (como demonstram os documentos publicados há dias por Al Jazeera) defronte a cada abertura dos palestinianos, foram funestos.
Os «Palestinian Papers», fornecidos pela emitente árabe, provavelmente minaram a credibilidade do líder palestiniano, Mahmud Abbas, aos olhos do seu povo (concessões excessivas, excessivo afã em fechar as contratações), mas perante os nossos olhos são claríssimos.

Durante dois anos, entre 2006 e 2008, a Autoridade Nacional Palestiniana avançou propostas muito generosas sobre os colonatos, sobre Jerusalém e sobre o «direito ao retorno» dos refugiados que tiveram de abandonar as próprias casas em 1948 e 1967.
O entendimento com o primeiro-ministro israeliano, Ehud Olmert, quase chegou a bom fim. Porém, a oposição dos colonos e, em seguida, o advento do governo de Netanyahu, sustentado pelos partidos de direita, tudo abortaram.
Hoje, se existisse um acordo com os palestinianos, a posição de Israel, perante o colapso do regime egípcio, seria diversa, menos inquietante e espinhosa? A resposta é sim.
Os motins do Cairo ainda não tiveram, felizmente, entoações alarmantes anti-israelianas. A paz com a Palestina, porém, teria tornado Israel menos só e menos perturbado de como se encontra nestas horas”
– Sandro Viola, La Repubblica, 03/02/2011.

Nada mais a acrescentar, excepto uma alusão ao governo de Netanyahu.
Neste momento, mas desde sempre, é um doso piores governos que a maioria israeliana poderia ter escolhido para a solução da paz naquela região. Mas é provável que o tivesse votado por este motivo.
Talvez esta minha opinião, que não censuro, seja fruto da profunda antipatia e desprezo que me merecem governos de extrema-direita, agravados, como neste caso, pelo apoio de religiosos fanáticos.
Alda M. Maia