domingo, agosto 08, 2010

A ETERNA QUESTÃO MORAL

De vez em quando, o pendão da questão moral é desfraldado como símbolo de uma luta política contra a tendência de interpretar a ética e legalidade como princípios insignificantes e as instituições como empecilhos. Evidentemente que entendo referir-me ao que se está a passar na Itália.

A actual crise política do governo Berlusconi nasce dos rebates de consciência do ex-aliado Gianfranco Fini - presidente da Câmara dos deputados - precisamente sobre o respeito pelo Estado de Direito e contra a desenvoltura como a ética e legalidade têm sido espezinhadas.

Devemos concordar que é uma atitude louvável e muito correcta.
Deixa-me um pouco perplexa, todavia, o motivo por que levou tanto tempo, aliado de há vários anos, a demonstrar publicamente o seu desagrado, provocando a ira do patrão e o consequente afastamento, por expulsão, do “Povo da Liberdade” (PDL).

Só me pergunto por que sempre votou sem pestanejar as tais “leis vergonha” que, despudoradamente, salvaguardavam os interesses do primeiro-ministro (e confrades), libertando-o de parte dos seus percalços judiciários.
Mas é sempre válido o ditado: mais vale tarde que nunca. Outras leis deste jaez, com o capcioso nome de “Reforma da Justiça”, estão em vias de ir a votação, se o governo não cair, obviamente.

Só me pergunto por que motivo, anteriormente, ficou impassível ante os ataques sistemáticos de Berlusconi à magistratura e às tentativas, conseguidas, de esvaziar o poder do Parlamento.
Por que razão fechou os olhos a um populismo da pior espécie, constantemente apregoado e actuado: o povo é soberano, Berlusconi ganhou as eleições, logo, não existem outros poderes.

Não se pode ignorar, todavia, que Gianfranco Fini demonstrou coragem e qualidades de um bom político. Oxalá não se trate de puro tacticismo de poder e seja verdadeiramente uma revolta sincera contra um regime de governo indecente. Mas insisto: será efectivamente sincera? Ou não se tratará de outras manobras?
(…) A língua dos políticos é bifurcada por definição, mas nunca, como agora, o jogo dos enganos é o instrumento-príncipe para a conquista do poder” – Eugénio Scalfari em La Repubblica de hoje.

Transcrevo parte de um editorial do semanário católico “Família Cristã”.
Certamente que não se trata de um artigo de “comunistas que odeiam o “Povo da Liberdade” - porque será que todas as espécies de regimes que escoiceiam as regras democráticas usam e abusam da palavra liberdade?!

(…) “O desastre ético está à vista de todos. O que provoca espanto é a resignação geral. A falta de indignação da gente comum.
É um sintoma que não devemos ignorar. Significa que o mal não diz respeito somente à classe política. Transbordou, atingindo a inteira sociedade. Prevalece a “moral feita à medida”: é bem apenas o que convém a mim, ao meu grupo, aos meus afiliados. O “bem comum” saiu de cena e tornou-se expressão obsoleta. A própria verdade objectiva submeteu-se a critérios de utilidade, interesses e conveniências.

(…) É fora de dúvida que existe, mesmo em altos níveis, uma alergia à legalidade e ao respeito das normas democráticas que regulam a convivência civil. O proclamado “garantismo”, sobretudo em favor dos potentes, é a pretensão, muito frequente, de impunidade total, não obstante a gravidade das imputações.
O apelo à legitimação do voto popular não é o salvo-conduto para a ilegalidade. No entanto, hostiliza-se quem invoca mais respeito pelas regras e pelos interesses gerais.
Uma concepção patronal do Estado reduziu ministros e políticos a “servidores”. Simples executores das vontades do chefe, sejam elas quais forem.
Pouco importa que o País caminhe para a ruína. Não se admitem réplicas ao pensamento único. E ai de quem se atreve a desafiar o “dominus” absoluto
.”

Faltaria apenas citar nomes, mas seria redundância. O Padre António Sciortino, director da revista Família Cristã, descreveu claramente o alvo do artigo.

No jornal Público tenho seguido os artigos sobre a Itália de Jorge Almeida Fernandes. Muito correctos e com variegadas citações de politólogos e editorialistas italianos. A descrição dos eventos, todavia, peca por excessiva esquematização. Explico melhor: se escrevesse sobre crises de um qualquer outro governo de um país democrático europeu normal, não as poderia descrever de forma diferente.

Ocupando-se, porém, da Itália, Jorge Almeida Fernandes omitiu explicar o que significa o fenómeno Berlusconi e o que de negativo tem o berlusconismo; omitiu aludir à onda de corrupção, recentemente descoberta, que envolve os colaboradores mais próximos do primeiro-ministro. Alguns foram detidos, outros continuam a ser investigados, incluindo um certo número de magistrados, um dos quais é o presidente do Tribunal da Relação de Milão: aceitou intervenções pouco ortodoxas, a fim de ser eleito para o cargo que ocupava. Parece que será transferido.
Já foi interrogado, pois que os magistrados do ministério público italianos - a maioria é constituída por pessoas sérias e competentes - conduzem os inquéritos com desassombro e independência.

Não penso que todas estas omissões - embora aqui e além apresente uma ou outra ligeira alusão - se baseiem na consciencialização de que os leitores portugueses já disso estão informados.
Se assim pensa, erra. Em Portugal, Berlusconi brilha mais pelo pitoresco das suas gafes e vícios amatórios que pelo regime que soube instaurar através dos potentes meios materiais e de comunicação de que é proprietário, sobretudo televisivos, ou que foi ocupando com pessoas que dele dependem: refiro-me à RAI. E com tudo isto ilude a opinião pública.
.
Chego à conclusão, mas poderei errar, que o competente e informadíssimo jornalista do Público se incline mais para as opiniões dos colegas de área conservadora.
Citou Piero Ostellino, editorialista do Corriere Della Sera, o qual se diz liberal equilibrado. Respeito muito mais outros liberais que, sem o proclamarem, são-no verdadeiramente.

(…) Embora, no Parlamento, o seu governo fique exposto a uma minoria, conforme as circunstâncias e os humores do ex-aliado, no País os números ainda dão razão a Berlusconi e que continua ainda o mais capaz de falar à “pança” dos italianos. É o efeito da personalização da política que se apresenta com o nome populismo. Não é uma palavra feia, mas um modo de exprimir-se da soberania popular; é o “homem da rua” que vota. – Piero Ostellino, Corriere Della Sera, 06 de Agosto 2010. O negrito é meu.

Se isto não é berlusconismo puro, que raio de nome poderemos dar a semelhante opinião? De um autêntico liberal não o é, certamente.
Alda M. Maia