segunda-feira, junho 28, 2010

HISTÓRIA DAS PALAVRAS:
ORIGEM DO NOME
JADE

Estas conversas de computador (as minhas) nascem, quase sempre, do acaso: ou porque determinado acontecimento atraiu a minha atenção com maior intensidade; ou porque um determinado editorial me provocou reacções contraditórias e quero esclarecê-las; ou, muito simplesmente, porque me decidi pôr em ordem de número uma série de sessenta volumes.
Porém, como sempre acontece, perdi-me a folheá-los.

São de pequeno formato (19 cm x 13,5 cm), elegante capa vermelha, nenhum deles vai além das 158 páginas, ilustrados com imagens sugestivas.

Editados pelos célebres Fratelli Fabri, em 1966, constituem uma das mais completas enciclopédias sobre as “artes menores”.
Chama-se “Elite. As Artes e os Estilos de todos os Tempos e Países”.

Cada tomo desenvolve um único tema, desde a ourivesaria medieval às miniaturas indianas, terracotas pré-colombianas, as decorações na idade barroca, o estilo Luís XV, enfim, nenhuma criação artística foi esquecida.

O tomo número quatro ocupa-se das “Jades Antigas”. Como sempre gostei desta pedra semipreciosa, iniciei a releitura. Transcrevo o primeiro parágrafo:
Jade (ou jada): este nome que, para a maior parte dos Ocidentais, possui um fascínio evocador de um fabuloso mundo de Oriente, tem, pelo contrário, uma banal e pouco poética origem europeia.

A história do jade é interessantíssima, embora a origem do nome seja controversa. Mas não antecipemos.

Nos fins do século XIV, Marco Polo trouxera notícias da existência, na China, de lindos objectos talhados numa pedra duríssima.
"O jade era considerado pelos chineses um bem precioso, talvez mais que o ouro, e possuía, segundo uma opinião difusa, uma lendária propriedade taumatúrgica. Por este motivo, era proibida, severamente, a exportação”.

(…) Sem dúvida alguma, foram os Portugueses a importar os primeiros jades na Europa.
Estes audazes mercantes e navegadores tinham estabelecido, a partir dos fins do século XVI, normais relações comerciais com a China. Chegados a Cantão em 1517, com algumas caravelas comandadas por Fernão Peres de Andrade, foram acolhidos amigavelmente. (…)

Como acima se refere, ao jade eram atribuídas “especiais propriedades medicamentosas. Especialmente, e por simples contacto, evitaria doenças renais e garantiria uma normal e regular diurese”.

Esta lenda acompanhou a belíssima pedra que os portugueses fizeram chegar a Portugal. As nossas gentes, imediatamente, aceitaram-na como verdadeira, baptizando-a com a uma expressão muito vernácula: pedra da mijada!
Já sabemos como se processa a evolução da uma língua: de uma expressão de três vocábulos chegou-se às duas últimas sílabas da última palavra, isto é, jada, jade

O grande e excelente Dicionário Houaiss acena a outra história, quando dá o significado de jade (do francês jade) e explica a origem, citando o padre Sebastião Rodolfo Dalgado que, por sua vez, se refere a Max Müller: o jade só foi conhecido após o descobrimento da América. A essa pedra os espanhóis deram-lhe o nome de “piedra de la ijada”.

Como é possível que, frequentemente, devamos ser rapinados nos nossos feitos!? Até nesta “glória” de dar um nome a uma pedra semipreciosa procuram a rapina!

Mas falemos seriamente. Considero o Houaiss como o actual melhor dicionário de língua portuguesa. Todavia, neste assunto, atribuo maior credibilidade a esta enciclopédia Elite. Além disso, como é lógico, todos os temas são corroborados por uma vasta e idónea bibliografia.

Nas páginas 38 e 39 aludem, exaustivamente, aos jades centro-americanos.

"Poucos anos após a chegada a Portugal dos primeiros objectos em jade, provenientes da China, os conquistadores espanhóis começaram a enviar do México para Espanha um grande número de estatuetas e jóias esculpidas numa pedra dura muito semelhante ao jade chinês trazido pelos Portugueses.
É pouco provável que a mesma crença sobre as virtudes diuréticas por contacto, deste mineral, fosse também radicada entre os povos Maya e Asteca. Portanto, é mais atendível que o nome “pedra da mijada” seja uma herança do País vizinho
”.

Herança de Portugal, obviamente, e que transitou para outras línguas. Ademais, vejo este caso muito mais aderente aos eventos históricos ligados às nossas andanças por terras do Oriente.

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Não fujo à tentação de narrar um facto sobre a palavra jade e que, em italiano, giada (djada), é também um nome próprio. Há muitas senhoras e meninas que se chamam Giada.

Em Turim, encontrava amiudadamente uma senhora dotada de grande simpatia e que sempre parava a conversar comigo. Nos últimos tempos, ressumbrava alegria por todos os poros: estava para nascer o primeiro ou primeira netinha.
Quando nasceu, deu-me a notícia com a descrição pormenorizada da menina que veio à luz. Depois dos parabéns e outras frases oportunas, a pergunta normal surgiu: - E como se vai chamar?

Resposta da senhora: - É um nome lindo! É um nome que traz os perfumes, todo o fascínio e odores do Oriente. Chamar-se-á Giada.

Já conhecia a origem do nome. Se a gentil senhora não aludia a perfumes, odores, a palavra giada não me faria evocar o nosso plebeísmo mijada que lhe deu origem. Porém, ouvindo-a ligada aos odores, o meu esforço não foi pequeno para abafar um sorriso divertido.

Mas comportei-me bem, como convinha a uma pessoa educada. Efectivamente, Giada ou Jade é um nome cuja eufonia é harmoniosa, sugestiva.
Não me cansei de elogiar o nome escolhido. E não fui hipócrita.
Alda M. Maia

segunda-feira, junho 21, 2010

A MORTE DE JOSÉ SARAMAGO VISTA DA ITÁLIA

As reacções, os comentários, a elevada opinião do mundo intelectual italiano sobre este nosso escritor, exceptuando a análise mesquinha - e que outro adjectivo aplicar? - de Cláudio Toscani, em “L’Osservatore Romano”, são unânimes nos diversos jornais, quer conservadores, independentes ou de esquerda.

Os títulos equivalem-se e as opiniões explicam o homem Saramago com todas as suas irreverências e absoluto desprezo pelas fórmulas diplomáticas, quando exterioriza abertamente o que pensa. Paralelamente, manifestam uma indiscutível admiração pela grandeza da obra: "um dos maiores escritores, se não o maior escritor dos tempos modernos".

Sensação muito agradável, perante este reconhecimento da imprensa italiana a um grande homem de letras lusitano.
Pode-se simpatizar ou não com o Saramago pessoa, com os seus modos rudes ou persuasivos; negar que é um grande da nossa e da literatura mundial, só de ignorantes ou cegos por claros ou latentes sectarismos.

Os noticiários da RTP respigaram amplos extractos do artigo do jornal do Vaticano, com o título: “Morreu Saramago / A omnipotência (presumida) do narrador”
E a partir deste título já se prevê a onda de crítica acerada que envolverá quase todos os livros de Saramago; o artigo de Cláudio Toscani não desmentiu o que se previa! Termina com este parágrafo:
(…) “Saramago foi, portanto, um homem e um intelectual de nenhuma admissão metafísica, fixo numa sua pervicaz confiança no materialismo histórico, aliás marxismo.
Colocando-se lucidamente ao lado da cizânia no campo de grão evangélico, declarava-se insone só com o pensamento das cruzadas, ou da inquisição, esquecendo a recordação dos gulags, das “purgas”, dos genocídios, dos "samizdat" culturais e religiosos
”.

Que Saramago tivesse asserido, em várias entrevistas, que sempre procurou separar a criação literária das ideias políticas, “L’Osseratore Romano” ignorou-o e tudo aproveitou para arremessar objecções ácidas.

Ao Vaticano cabe toda a legitimidade de contestar o que fere a essência do catolicismo. Todas as críticas, porém, são válidas e dignas de respeito, quando expressas com objectividade e elegância. Foram estes dois factores que Cláudio Toscani decidiu ignorar.

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O Deus de Saramago Silêncio do Universo”: este é o título de um artigo, publicado no jornal La Stampa, que li e reli com um interesse redobrado. O autor é o teólogo Juan José Tamayo, fundador e secretário dos teólogos João XXIII.

No primeiro parágrafo, Tamayo descreve uma caminhada pelas ruas de Sevilha – em 11 de Setembro 2006 - na companhia de Saramago e da pintora Sofia Gandarias, tradutora de Saramago, em direcção da Aula Magna da Universidade. Às nove da manhã, quando atravessavam a praça da Giralda, os sinos da Catedral de Sevilha começaram a repicar. Saramago comentou: “Os sinos tocam porque passa um teólogo”. “Não – respondeu-lhe Tamayo – o som dos sinos anuncia que um ateu está em vias de se converter ao catolicismo”.
Juan José Tamayo continua:

Durante aquele breve diálogo, a resposta do romancista português não se fez esperar: «Isso nunca. Toda a minha vida fui ateu e continuarei a sê-lo no futuro».
Imprevistamente, veio-me à ideia uma definição poética de Deus que, sem hesitações, lhe recitei: «Deus é o silêncio do universo, e o ser humano o grito que dá um sentido a tal silêncio». “Esta definição é minha” - reagiu imediatamente o Prémio Nobel.
Respondi-lhe: “Efectivamente, foi por essa razão que lha recitei. E esta definição encosta-se mais a um místico que a um ateu


Repito e ponho em destaque a definição de Saramago, pois acho-a lindíssima: “Deus é o silêncio, e o ser humano o grito que dá um sentido a tal silêncio”.

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Uma curiosidade que me divertiu: sexta-feira passada, publicando a notícia da morte de José Saramago, seja o Corriere della Sera, seja o jornal La Stampa, repetiram o mesmo conceito sobre a obra do “autor irreverente”, usando exactamente as mesmas palavras: (…) “O discurso flui contínuo, numa massa harmónica de palavras que assumem, página após página, a estrutura concreta de um edifício soberbo e, talvez, dificilmente acessível”.
Quem será o verdadeiro autor desta análise literária, “rapinada” pelos dois jornais?

La Repubblica dedicou a Saramago duas páginas inteiras, além de um artigo de homenagem de Roberto Saviano.
Numa dessas páginas, ao fundo, lê-se um comunicado da editora Einaudi: “Os amigos da Einaudi recordam com afecto José Saramago, as palavras e as histórias que deu ao mundo, as batalhas, as gargalhadas, as altercações, as noites em Lisboa que tornaram irrepetíveis tantos e longos anos em conjunto”.

Einaudi fora a editora de Saramago. Faz parte do grupo editorial Mondadori, propriedade de Berlusconi. Em Maio do ano passado, recusou publicar uma obra de Saramago – Cadernos - onde o autor criticava duramente o inefável Berlusconi, chamando-lhe “delinquente”.

Sobre este assunto, numa entrevista a um jornalista do Corriere della Sera, Saramago esclareceu: Conheci a censura durante a ditadura portuguesa, sofri-a e combati-a. Ninguém, numa situação de aparente normalidade democrática, me poderia pedir para amputar uma obra.

Quando o jornalista lhe perguntou a razão por que comparava Berlusconi a um “chefe da máfia”, Saramago responde: Parece-lhe verdadeiramente exagerado? Está certo disso? Conceder-me-á, pelo menos, que tem uma mentalidade mafiosa”
Alda M. Maia

domingo, junho 13, 2010

OS NOVOS BÁRBAROS NA DEMOCRACIA ITALIANA
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"A lei-mordaça nega aos cidadãos o direito de serem informados"
*
A estes bárbaros, os eleitores deram-lhes legitimidade e têm o direito de governar.
Mercê de uma reforma eleitoral por eles cozinhada à última hora numa precedente legislatura, obtiveram uma abundante maioria nas duas câmaras do Parlamento.

Foram-lhes concedidas excelentes condições, a fim de operar milagres na elevação económica, cultural, social e financeira do belíssimo País.
Porém, são bárbaros. Não os bárbaros como os entendiam gregos e romanos, obviamente, mas os bárbaros da idade moderna: grosseiros, incivilizados, populistas, enfim, autênticos fascistas na interpretação do poder e da ética democrática.

Como já outras vezes asseri, sei que até hoje se tem usado e abusado do termo fascista, banalizando-o. Todavia, aqui, quero mesmo significar as pulsões que conduzem ao que foi o vinténio de Mussolini, pois no comportamento da actual maioria que governa a Itália verificam-se, agora abertamente, comportamentos antidemocráticos de uma gravidade que não pode ser ignorada.

O escritor António Tabucchi chama a atenção da União Europeia e convida o Conselho de Europa a exigir que, na Itália, sejam respeitadas as regras da democracia, tal o perigo de contágio. Mas a Europa dorme!
Paralelamente, grande parte do mundo cultural italiano assiste a este espectáculo degradante, através da janela, passivamente, quando se esperaria uma reacção geral e compacta.
Quanto à oposição, é melhor usar um piedoso véu do silêncio e não exprimir opiniões.

O jornal La Repubblica de sexta-feira passada saiu com a primeira página em branco, conforme a foto acima reproduzida, em sinal de protesto contra a contestadíssima “lei mordaça” sobre as interceptações telefónicas, meio indispensável na luta contra a corrupção, crime organizado e outros pesados atropelos à legalidade.
Quando tive o jornal na mão, aquela página impressionou-me!

Ainda não foi aprovada definitivamente, pois tem de passar pela Câmara dos deputados. Mas na passagem pelo Senado, o régulo que preside o Conselho de Ministros italiano impôs o voto de confiança, "para não perder tempo", esvaziando a função do Parlamento.
Este órgão de soberania não passa de um empecilho, segundo a sua concepção, várias vezes conclamada – ademais, despudoradamente, asseriu que “é um inferno governar com as regras da Constituição”.

Com a aprovação no Senado, mais se agudizou a revolta de magistrados, polícia, jornais, constitucionalistas e todas as pessoas com um forte sentido de um estado de direito.

Se há abusos contra o segredo de justiça e se publicam informações lesivas da privacidade e inocência das pessoas, por que não robustecer e tornar inflexíveis as regras que já existem e responsabilizam os únicos funcionários que devem seleccionar e custodiar os documentos investigativos, protegendo quem não é imputado?

Mas não era a simplicidade dessa norma que interessava ao governo. As finalidades são outras.
Assim, elaborou-se uma espécie de aborto legislativo. Eis os pontos mais controversos e intoleráveis, além de muitos outros não menos atentatórios à tarefa dos magistrados, a fim de descobrir a verdade; ao trabalho da polícia; ao direito à informação.

As interceptações são possíveis somente perante graves indícios e se indispensáveis para as investigações”. E como determinar a indispensabilidade?

Se não fossem as interceptações, não se teria descoberto o recente escândalo de corrupção de um ministro e altos funcionários da administração pública.
Este é o exemplo mais recente e perfeitamente elucidativo sobre as intenções do governo: pôr travão e cobrir outros prováveis corruptos. Ademais, na primeira fórmula do decreto-lei, este aplicar-se-ia às investigações e processos em curso.
Claríssimo!

O período das interceptações não pode superar 75 dias e devem ser autorizadas por um colectivo de três juízes.
Terminado esse espaço de tempo, o Ministério Público pode solicitar prorrogações de três em três dias
. Que tráfego de solicitações!

No País onde o crime organizado impera e é aquele polvo que estende os tentáculos por todas as regiões de Itália; onde a colusão da política com o poder mafioso é claramente demonstrada, estes absurdos entraves nas investigações só poderiam ter origem na mente de um bárbaro moderno que vê a Justiça como um estorvo ao “faz o que te apetece e te enriquece”.

É proibido dar notícias sobre qualquer acto, mesmo que não seja secreto, até ao fim da instrução do processo.
Até que se chegue ao processo, a imprensa nada pode informar sobre os inquéritos em curso, muito menos dar a conhecer interceptações. Incorrerão em penas de prisão e multas avultadas. As multas aos editores podem atingir 450 mil euros.


Achei curioso um artigo desse decreto-lei mordaça: Impossível interceptar um sacerdote sem avisar a autoridade eclesiástica. A que propósito?

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Transcrevo excertos de dois artigos: um de Giorgio Bocca no jornal La Repubblica de ontem; outro de Luigi La Spina, também de ontem no jornal La Stampa.

“O «Cavaliere» impune e a regra do silêncio”
Abaixo a máscara. O que deseja, o que pretende a maioria no poder é a impunidade, o silêncio sobre os seus furtos e malversações.

(…) Hoje a maioria reivindica o direito de roubar através da política como um normal e devido direito de predação.
(…) Hoje na Itália berlusconiana o furto através da política é aberto, normal. Sempre que seja possível, rouba-se. Surge a suspeita que houve uma mutação antropológica, que a maioria no poder esteja convencida que o uso da política para roubar não somente seja normal, como louvável e que as instituições tenham o dever de os proteger
. (...) – Giorgio Bocca, La Repubblica

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“A cortina fumígena do governo”
O caso da lei sobre as interceptações é, na realidade, bastante claro e a opinião pública compreendeu inteiramente o significado e, sobretudo, os objectivos. Podem resumir-se em poucas palavras.
Há alguns meses, os jornais documentaram – e também através da publicação de conversas telefónicas – um clima de corrupção político-administrativa alargada e preocupante.

(…) O governo, sentindo o avolumar-se da indignação dos cidadãos por estes escândalos que se abatem sobre a classe política com impressionante frequência, colheu o pretexto dos abusos das publicações das escutas para lançar um lei que, se for promulgada, terá duas consequências: tornar mais difícil, para a magistratura, a utilização deste meio de investigação e limitar fortemente o direito / dever dos jornalistas de informar os cidadãos
(…) – Luigi La Spina, no jornal La Stampa

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Alda M. Maia

domingo, junho 06, 2010

QUO VADIS, ISRAEL?

Cego por uma convicção de invencibilidade e dominado pela obsessão da segurança, Israel tudo alicerça sobre estes dois factores e perdeu o sentido de orientação entre o que é justo e o que se torna inadmissível.

Deixo a palavra a David Grossman, num artigo publicado no jornal La Repubblica de 01 de Junho: “A Condenação das Marionetas” - uma análise objectiva e desapiedada. É leitura que recomendo.

Nenhuma explicação pode justificar ou mascarar o crime cometido por Israel e nenhum pretexto pode motivar a idiotice do seu governo e do seu exército.
Israel não enviou os seus soldados para matar civis a sangue frio. Praticamente, era a última coisa que desejaria tivesse acontecido.
Todavia, uma pequena organização turca, com uma ideologia fanática e religiosa, hostil a Israel, recrutou algumas centenas de pacifistas e conseguiu fazer cair o Estado hebraico numa ratoeira, precisamente porque sabia como teria reagido e até que ponto era condenado, como uma marioneta, a fazer o que fez.

Quanto deve sentir-se insegura, confusa, assustada uma nação para comportar-se como fez Israel!
Recorrendo a um uso exagerado da força, embora aspirasse a conter os limites da reacção dos presentes no navio, matou e feriu civis fora das próprias águas territoriais, comportando-se como um bando de piratas.

É claro que estas minhas palavras não exprimem, absolutamente, aquiescência às motivações, escondidas ou evidentes – por vezes malvadas – de alguns dos participantes dos barcos directos a Gaza.
Nem todos são pacifistas, animados de intenções humanitárias e certas declarações de alguns deles, relativamente à destruição do Estado de Israel, são infames. Porém, tudo isto, agora, é irrelevante: estas opiniões não prevêem, por aquilo que sabemos, a pena de morte.

A acção de ontem, levada a cabo por Israel, nada mais é que a continuação do prolongado e ignóbil bloqueio da Faixa de Gaza o qual, por sua vez, não passa de uma consecução natural da óptica agressiva e arrogante do governo israeliano, pronto a tornar impossível a vida de um milhão e meio de inocentes de Gaza, a fim de obter a libertação de um único soldado, por quanto querido e amado.

O bloqueio é também a continuação natural de uma linha política fossilizada e desajeitada que em cada encruzilhada decisional e sempre que sejam indispensáveis o cérebro, sensibilidade e criatividade, recorre a uma força enorme, exagerada, como se esta fosse a única escolha possível.

De qualquer maneira, todas estas estultices – incluída a operação absurda e letal de ontem à noite – parecem fazer parte de um processo de corrupção que se torna cada vez mais difuso em Israel.
Experimenta-se a sensação que as estruturas governativas estejam besuntadas, avariadas.
Talvez fruto da ânsia provocada pelas próprias acções, pelos próprios erros nos últimos decénios, pelo desespero de desfazer um nó cada vez mais intrincado, estas estruturas se tornem sempre mais fossilizadas, sempre mais refractárias aos desafios de uma realidade complexa, delicada, e que percam a frescura, a originalidade e a criatividade que, em tempos, as caracterizavam e caracterizavam todo o Israel.

O bloqueio da Faixa de Gaza faliu. É já um falimento de há quatro anos.
Não somente tal bloqueio é imoral como nem sequer é eficaz. Não faz que piorar a situação, como verificámos nestas horas, além de também prejudicar gravemente Israel.

Os crimes dos líderes do Hamas que mantêm como refém Gilad Shalit de há quatro anos a esta parte sem que lhe seja permitido, pelo menos, uma visita dos representantes da Cruz Vermelha, que lançaram milhares de
rokets contra centros habitados israelianos, devem ser enfrentados, usando vias legais com todos os meios jurídicos á disposição de um Estado.
O prolongado isolamento de uma população civil não é um destes meios.

Desejaria poder acreditar que o trauma pela acção irresponsável de ontem nos leve a reexaminar toda esta ideia do bloqueio e a libertar, finalmente, os palestinianos do seu sofrimento e Israel desta mancha.
Mas a nossa experiência, nesta região desgraçada, ensina-nos que sucederá o contrário: que os mecanismos da violência, da represália e o ciclo da vingança e do ódio ontem começaram a girar e ainda não podemos imaginar com qual força.

Acima de qualquer outra consideração, esta operação louca revela até que ponto chegou Israel!
Não vale a pena desperdiçar palavras. Quem tem olhos para ver compreende.
Não restam dúvidas que, dentro de poucas horas, haverá quem se apressará a transformar o sentimento de culpa (natural e justificado) de muitos israelianos, em tonitruantes acusações a todo o mundo.

Com a vergonha, todavia, já teremos mais dificuldade para chegar a um acordo
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David Grossman; La Repubblica de 01 Junho 2010

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Não menos interessante o que escreveu um outro famoso escritor israeliano, Amos Oz, sempre no jorna La Repubblica, em 3 de Junho.

(…) Mas o Hamas não é somente uma organização terrorista. Hamas é uma ideia. Uma ideia desesperada e fanática, provinda da desolação e frustração de muitos palestinianos.
Nunca nenhuma ideia foi derrotada com a força: nem com o assédio, os bombardeamentos, os comandos da Marinha. Nenhuma ideia se arrasa com os carros armados.
Para derrotar uma ideia é necessário propor uma ideia melhor, mais cativante, mais aceitável
” (…)

(…) Qualquer iniciativa que preveja um uso da força, não como meio de prevenção, de autodefesa, mas para truncar os problemas e sufocar as ideias, conduzirá a novos desastres como o que fomos procurar em águas internacionais, no alto mar, defronte à beira-mar de Gaza.

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Que mais se poderia escrever senão compartilhar estas opiniões, tanto mais que provêm de quem se encontra imerso em todos estes problemas?
Alda M. Maia