domingo, março 01, 2009

O REINO DOS CONSTRUTORES CIVIS
AS CONTENCIOSAS “PERMILAGENS”


Achei curioso o acórdão do tribunal da Boa-Hora versus um construtor civil: condenado com uma multa de 5 mil euros por “corrupção activa em acto lícito”.
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Sempre pensei que o termo corrupção pressupusesse, na sua inteireza, conotações negativas. Que seja corrupção em acto lícito ou ilícito, nunca deixa de ser, por si mesmo, um acto indecente e merecedor de uma pena severa.
Ademais, se o acto era lícito, que necessidade havia de percorrer vias proibidas, em vez de reivindicar os próprios direitos ou esclarecer razões?
Cinco mil euros de multa significam um brando puxão de orelhas com a recomendação: “Vê lá! Não faças outra!”
Decididamente, não compreendo nem quero compreender.

Este facto trouxe-me à memória uma outra faceta do modus faciendi de vários construtores civis, embora nada tenha que ver com o acórdão supracitado.
Quero referir-me, sobretudo (e denunciando mesmo), à ausência de regras no registo do “título constitutivo” da Propriedade Horizontal.

Por vezes, os construtores comportam-se com uma desenvoltura irresponsável, dando lugar a consequências que, se não são irreparáveis, apresentam-se de difícil solução e geradoras de graves causas de atritos.

A nebulosidade das leis, ou a irrealidade de muitas na aplicação prática, ajuda a que os interesses de uns, frequentemente, se sobreponham aos interesses do que será uma minoria anónima sem voz. E quando digo sem voz, aludo a um labirinto onde a voz do bom senso não encontra saída.

Este é um tema que, em fim de contas, podemos classificar de carácter social: pelas implicações económicas; pela convivência correcta e pacífica entre condóminos. Mas certos construtores civis fazem o que muito bem lhes agrada ou convém e não existem denúncias públicas sobre as consequências negativas que, dia a dia, estão sob os nossos olhos.

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Projectam-se prédios em regime de propriedade horizontal, procede-se ao acto notarial do “Título Constitutivo”, onde se indicam áreas, valores das respectivas fracções e as famigeradas permilagens.

Nesta segunda fase da existência do prédio, subdividido em fracções destinadas a serem postas no mercado, o construtor determina a criação de valores que, muito frequentemente, não somente são absurdos como estúpidos - não sei se ilegítimos!

Apresento um caso concreto - há outros semelhantes, na mesma zona - feito em 1992, salvo erro.

Imaginemos um prédio de quatro andares: dez apartamentos - os dois últimos em duplex - mais três fracções autónomas de aparcamento.

A fim de dar relevo às três fracções de aparcamento – fracções A, B e C – situadas no espaço destinado a garagem, a empresa construtora registou os seguintes valores:
Fracção A: 40 m2 com o valor de 480 mil escudos (12 mil escudos/m2) e representando 2% do valor total do prédio.
Fracção B: 10 m2 (dez), valor = 240 mil escudos (24 mil escudos/m2), percentagem =1%
Fracção C: 08 m2 (oito), valor = 240 mil escudos (30 mil escudos/m2), percentagem = 1%.
Um esclarecimento: na pavimentação das fracções B e C não se usou mármore ou quaisquer outros materiais de luxo, mas o pobre cimento de uma qualquer garagem sem pretensões!...

Daqui, é fácil imaginar as salsadas que guisaram com os restantes valores das "permilagens", distribuindo-os a olho, segundo explicaram, pelas fracções destinadas a habitação.

Atribuíram 7% a um T1. Os apartamentos T2 de 88,5 / 90,5 m2 - mais um de 76 m2 - foram arrumados com um valor único de um milhão novecentos e vinte mil escudos e a relativa percentagem de 8% do valor do prédio.

Sobravam 33%. Despacharam-nos para os dois apartamentos do 4.º andar em duplex, cuja área é de 157 e 161 m2, respectivamente.
Inventaram um valor, sem qualquer base que o justificasse, e atribuíram 16,5% a cada um.
Conclusão: um apartamento de 90,5 m2 corresponde a 8% do valor do prédio. Em condições exactamente iguais, uma área de 157 m2, no mesmo prédio, corresponde a 16,5%. Uns génios do cálculo!

Os atritos não se fizeram esperar. De um lado, o egoísmo e desonestidade de quem quer pagar o mínimo das despesas correntes, aproveitando-se destas anomalias; do outro, quem não aceita “permilagens” que se assemelham mais a uma extorsão legalizada do que a uma equidade obrigatória.

E agora pergunto: que raio de leis são estas que permitem semelhantes disparates? Que direitos são estes que, perante igual fruição das partes comuns, dão força de lei a discrepâncias com tais dimensões?

Como permitem "Títulos Constitutivos da Propriedade Horizontal" feitos sem qualquer lógica nem respeito pelo justo interesse e tranquilidade dos futuros proprietários?

Que faz o poder legislativo que não tem olhos nem orelhas para estes problemas da vida normal, não estudam certas leis de “direito teórico” que, na prática, constituem uma fonte incontestável de descarados abusos e iniquidades?

A resposta a quem sabe. Mas apercebo-me que existe tanta, muitíssima ignorância a propósito desta matéria! Ou interesses bem protegidos?
Alda M. Maia