"O QUE NUNCA FALTA"
A esta pergunta respondeu, exaustivamente, o escritor e editorialista sobre economia e política internacional, titular de vários cargos de prestígio e espessura intelectual, Moisés Naím.
Num artigo intitulado “Se as Armas Nunca Faltam”, desenvolveu uma análise desapiedada sobre a loucura humana.
Seguindo o que se passa na Síria, uma matança horrorosa que não horroriza a Rússia, pois tem ali um bom mercado de armas, há dias recordei-me deste artigo que tinha conservado. È uma apreciável fonte de informações sobre este tema. Procurarei transcrevê-lo
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O que é que parece abundar nos lugares mais pobres e remotos do planeta? As armas.
Quando foi a última vez que uma guerra, uma revolta ou um movimento guerrilheiro cessaram, porque uma das partes em conflito teve escassez de armas? Nunca.
Onde há guerra, o dinheiro sempre comparece; e onde há o dinheiro, sempre comparecem as armas. E não comparecem somente onde há a guerra e onde há o dinheiro. As armas também abundam nos lugares mais miseráveis da terra.
Nos centros urbanos onde tudo falta e impera a carestia, onde as crianças não têm leite, os jovens não têm livros e a fome é uma coisa de todos os dias, o que nunca falta são as armas: pistolas, revolveres, fuzis, metralhadoras, lança-granadas, e outras armas portáteis são uma presença tragicamente comum, nos bairros pobres de todo o mundo.
Abundam também naquelas partes do mundo onde só existe fome, sede e morte. Nas aldeias e cidades do Sudão, do Iémen; nas florestas da Colômbia ou do Sri Lanka; nas montanhas do Congo, do Afeganistão ou da Chechénia falta tudo, mas não as armas: armas que, anualmente, provocam meio milhão de mortes.
A “Small Arms Survey” é uma iniciativa do centro de Estudos Internacionais de Genebra, especializada nas análises do comércio internacional de armas ligeiras. Os Investigadores da “Small Arms Survey” calculam que existam 875 modelos de armas ligeiras em circulação pelo mundo, produzidos por mil empresas em mais de cem países, num mercado que movimenta 7 mil milhões de dólares por ano.
Os entendedores concordam que o principal obstáculo para reduzir o massacre causado pela proliferação de armas portáteis é a falta de informações.
O anonimato na fabricação, a compra e venda de armas e o segredo bem guardado sobre a destinação, assim como as quantidades e tipologia das armas que são comercializadas, tornam mais difícil a aplicação de políticas capazes de mitigar o problema, obstaculando os esforços internacionais necessários para enfrentar uma ameaça que não respeita as fronteiras nacionais.
Com o fim da guerra fria e a celeridade da globalização, intensificaram-se duas tendências que tornam ainda mais complicado o problema das armas ligeiras e o acesso às informações: a proliferação e a privatização.
Hoje há mais fornecedores e compradores do que nunca e, em vez de Governos ou forças armadas regulares, predominam os adquirentes “privados”, como rebeldes, guerrilheiros, terroristas e bandos criminosos.
O incremento da oferta de armas é considerável: antes, as empresas que fabricavam armas ligeiras ultrapassavam de pouco a centena; hoje, são mais de mil e o número aumenta. Antes, localizavam-se num restrito número de países; hoje, em qualquer parte.
Antes, eram um apêndice dos governos, embora, formalmente, fossem empresas privadas.
Agora, o controlo dos governos ou das forças armadas sobre a produção de armas atenuou-se e há empresas internacionais que, de facto, agem de uma maneira absolutamente independente. Isto contribui para que os compradores de armas ligeiras de hoje possam contar com uma quantidade de fornecedores sem precedentes.
O mesmo sucede no que diz respeito á procura: o número de clientes e a solicitação de armas está a aumentar. Estranhamente, tudo isto sucede, precisamente no momento em que as guerras entre países diminuíram (a partir dos anos 90, os conflitos armados entre nações tornaram-se cada vez mais raros). Todavia, sucedo o contrário no que concerne os conflitos internos dos países e verificámos como aumentaram as guerras civis, as insurreições, os recontros armados entre facções políticas.
A primavera Árabe, por exemplo, produziu um choque de procura no mercado das armas ligeiras. Na Síria, antes da crise, um Kalashnikov poder-se-ia comprar no mercado negro por 1.200 dólares; agora, custa mais de 2.100.
Tudo isto não significa que os governos e as forças armadas regulares não continuem a ser os protagonistas do mercado internacional das armas ligeiras. Os Estados Unidos e a Europa são os maiores produtores e exportadores. Paradoxalmente, todavia, os Governos destes países são os que envidam mais esforços para conter o boom mundial deste tipo de armamento.
Estamos habituados à hipocrisia nas relações internacionais e, por vezes, a única consequência são os discursos aborrecidos sem efeito de relevo. Porém, no caso da indolência da comunidade internacional em relação à proliferação das armas ligeiras, dos países e das empresas que sobre elas ganham, a hipocrisia produz consequências letais.
Moisés Naim - La Repubblica - 27/03/2012
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