segunda-feira, junho 21, 2010

A MORTE DE JOSÉ SARAMAGO VISTA DA ITÁLIA

As reacções, os comentários, a elevada opinião do mundo intelectual italiano sobre este nosso escritor, exceptuando a análise mesquinha - e que outro adjectivo aplicar? - de Cláudio Toscani, em “L’Osservatore Romano”, são unânimes nos diversos jornais, quer conservadores, independentes ou de esquerda.

Os títulos equivalem-se e as opiniões explicam o homem Saramago com todas as suas irreverências e absoluto desprezo pelas fórmulas diplomáticas, quando exterioriza abertamente o que pensa. Paralelamente, manifestam uma indiscutível admiração pela grandeza da obra: "um dos maiores escritores, se não o maior escritor dos tempos modernos".

Sensação muito agradável, perante este reconhecimento da imprensa italiana a um grande homem de letras lusitano.
Pode-se simpatizar ou não com o Saramago pessoa, com os seus modos rudes ou persuasivos; negar que é um grande da nossa e da literatura mundial, só de ignorantes ou cegos por claros ou latentes sectarismos.

Os noticiários da RTP respigaram amplos extractos do artigo do jornal do Vaticano, com o título: “Morreu Saramago / A omnipotência (presumida) do narrador”
E a partir deste título já se prevê a onda de crítica acerada que envolverá quase todos os livros de Saramago; o artigo de Cláudio Toscani não desmentiu o que se previa! Termina com este parágrafo:
(…) “Saramago foi, portanto, um homem e um intelectual de nenhuma admissão metafísica, fixo numa sua pervicaz confiança no materialismo histórico, aliás marxismo.
Colocando-se lucidamente ao lado da cizânia no campo de grão evangélico, declarava-se insone só com o pensamento das cruzadas, ou da inquisição, esquecendo a recordação dos gulags, das “purgas”, dos genocídios, dos "samizdat" culturais e religiosos
”.

Que Saramago tivesse asserido, em várias entrevistas, que sempre procurou separar a criação literária das ideias políticas, “L’Osseratore Romano” ignorou-o e tudo aproveitou para arremessar objecções ácidas.

Ao Vaticano cabe toda a legitimidade de contestar o que fere a essência do catolicismo. Todas as críticas, porém, são válidas e dignas de respeito, quando expressas com objectividade e elegância. Foram estes dois factores que Cláudio Toscani decidiu ignorar.

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O Deus de Saramago Silêncio do Universo”: este é o título de um artigo, publicado no jornal La Stampa, que li e reli com um interesse redobrado. O autor é o teólogo Juan José Tamayo, fundador e secretário dos teólogos João XXIII.

No primeiro parágrafo, Tamayo descreve uma caminhada pelas ruas de Sevilha – em 11 de Setembro 2006 - na companhia de Saramago e da pintora Sofia Gandarias, tradutora de Saramago, em direcção da Aula Magna da Universidade. Às nove da manhã, quando atravessavam a praça da Giralda, os sinos da Catedral de Sevilha começaram a repicar. Saramago comentou: “Os sinos tocam porque passa um teólogo”. “Não – respondeu-lhe Tamayo – o som dos sinos anuncia que um ateu está em vias de se converter ao catolicismo”.
Juan José Tamayo continua:

Durante aquele breve diálogo, a resposta do romancista português não se fez esperar: «Isso nunca. Toda a minha vida fui ateu e continuarei a sê-lo no futuro».
Imprevistamente, veio-me à ideia uma definição poética de Deus que, sem hesitações, lhe recitei: «Deus é o silêncio do universo, e o ser humano o grito que dá um sentido a tal silêncio». “Esta definição é minha” - reagiu imediatamente o Prémio Nobel.
Respondi-lhe: “Efectivamente, foi por essa razão que lha recitei. E esta definição encosta-se mais a um místico que a um ateu


Repito e ponho em destaque a definição de Saramago, pois acho-a lindíssima: “Deus é o silêncio, e o ser humano o grito que dá um sentido a tal silêncio”.

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Uma curiosidade que me divertiu: sexta-feira passada, publicando a notícia da morte de José Saramago, seja o Corriere della Sera, seja o jornal La Stampa, repetiram o mesmo conceito sobre a obra do “autor irreverente”, usando exactamente as mesmas palavras: (…) “O discurso flui contínuo, numa massa harmónica de palavras que assumem, página após página, a estrutura concreta de um edifício soberbo e, talvez, dificilmente acessível”.
Quem será o verdadeiro autor desta análise literária, “rapinada” pelos dois jornais?

La Repubblica dedicou a Saramago duas páginas inteiras, além de um artigo de homenagem de Roberto Saviano.
Numa dessas páginas, ao fundo, lê-se um comunicado da editora Einaudi: “Os amigos da Einaudi recordam com afecto José Saramago, as palavras e as histórias que deu ao mundo, as batalhas, as gargalhadas, as altercações, as noites em Lisboa que tornaram irrepetíveis tantos e longos anos em conjunto”.

Einaudi fora a editora de Saramago. Faz parte do grupo editorial Mondadori, propriedade de Berlusconi. Em Maio do ano passado, recusou publicar uma obra de Saramago – Cadernos - onde o autor criticava duramente o inefável Berlusconi, chamando-lhe “delinquente”.

Sobre este assunto, numa entrevista a um jornalista do Corriere della Sera, Saramago esclareceu: Conheci a censura durante a ditadura portuguesa, sofri-a e combati-a. Ninguém, numa situação de aparente normalidade democrática, me poderia pedir para amputar uma obra.

Quando o jornalista lhe perguntou a razão por que comparava Berlusconi a um “chefe da máfia”, Saramago responde: Parece-lhe verdadeiramente exagerado? Está certo disso? Conceder-me-á, pelo menos, que tem uma mentalidade mafiosa”
Alda M. Maia

1 Comments:

At 11:59 da manhã, Blogger Teresa Fidalgo said...

Viva, D. Alda!

De facto, linda definição! Tinha razão.


Um grande beijinho

 

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