NA ESTEIRA DE UMA
POLÉMICA SEMPRE VIVA,
UMBERTO ECO E
INTERNET
Efectivamente, a
polémica sobre a “imbecilidade que reina na Internet”, levantada no ano passado
por Umberto Eco, prossegue. Gianfranco
Marrone, escritor e professore universitário de Semiótica na Universidade
de Palermo, no sábado passado publicou um artigo no jornal La Stampa sobre o
mesmo argumento. Interessante.
Decidi traduzi-lo,
embora o uso abundante da intercalação de frases no discurso não facilite a
rápida assimilação dos argumentos do Sr. Professor de Semiótica.
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“UMBERTO
ECO TINHA RAZÃO,
O
WEB CRIA ESTÚPIDOS INTELIGENTES”
"Ireneu Funes, herói
de memória em excesso, não tinha corpo. Ou, quando muito, utilizava-o o menos
possível.
Recordando tudo de
tudo até aos ínfimos detalhes da mais banal das situações, cada coisa e cada
percepção das coisas, cada palavra escutada, cada sentimento experimentado,
Funes preferia viver na obscuridade, pensando o menos possível e existindo o
mínimo indispensável.
Demasiadas coisas na
mente, a fim de poder armazenar outras diversas. Mas com qual princípio
ordenador? Com qual método? Acabava por ser - nota Jorge Luís Borges, o seu
visionário inventor – uma pura voz: alta, nasal, burlesca. Efémera."
"Tenhamos presente
esta parábola hiperliterária, simplesmente porque Umberto Eco a utilizou para
explicar o funcionamento da rede, os mecanismos da Internet, os efeitos
cognitivos e estéticos dos social
network.
Eco e Borges, os dois
autores máximos das totalizações impossíveis – a biblioteca infinita, o
labirinto semiótico, o mapa um a um, Menard que reescreve Cervantes… - também assim
se encontraram a compartilhar o problema da memória ambivalente: poucas
recordações imbecilizam; recordações excessivas, idem.
Indubitavelmente, aquela
que é – pelo menos desde os sapientes gregos aos gigantescos reservatórios das hodiernas
máquinas pensantes, passando pelos big
data dos péssimos da última hora – a principal prerrogativa da inteligência
e do conhecimento, da ciência e da filosofia, isto é, a memória, vê-se entalada
entre duas idiotices opostas e complementares: a incapacidade cognitiva do
desmemoriado recidivo e a jactância inútil de quem recorda para além do
necessário
Funes considera os
humanos, distraídos incuráveis, seres que lhe são inferiores. Porém, tem um
medo instintivo deles, porque, contrariamente a si mesmo, mais ou menos sabem
como viver. Posto o caso desta maneira, o assunto polémico dos estúpidos na
rede – que Umberto Eco, provocando-nos até ao extremo, quis consignar-nos –
adquire uma nova forma.
Recordar-se-á a
polémica que tinha desencadeado, no ano passado e poucos meses antes de
falecer, com uma sua declaração pública (“A
Internet está cheia de imbecis”), sobretudo, como é óbvio, na própria
Internet. Todos a declarar que não é verdade; que o mestre, desta vez, cometeu
um erro; que a rede é o melhor dos mundos possíveis… e ultrapasso os insultos.
Num dos seus últimos
artigos, Eco replicou manhosamente, apresentando uma cajadada de contas:
Facebook multiplicou os bares do desporto, de maneira que, qualquer pessoa e
em qualquer momento sente-se no direito de falar a despropósito."
"Mas o debate ainda
continua aberto e serve para reflectir, não só sobre o Web e os seus resíduos,
como sobre o sentido profundo da estupidez. De nenhuma maneira evidente.
Musil, por exemplo, observava que não há
pior estúpido do que aquele que ostenta a própria inteligência.
Barthes recordava que é necessário
sentir-se estúpidos para sê-lo de menos.
E já Flaubert repetia que a verdadeira
idiotice consiste em querer deduzir. Tem de quê.
Quanto à rede,
falou-se de tudo e do seu contrário. Aplaudida, quando nasceu como a panaceia
de todos e de todas as dores de barriga ideológicas, terreno onde a liberdade
de palavra teria nutrido o peace-and-love
pós-californiano, tornou-se no inferno ao ar livre, onde ignotos oligarcas
sugam o sangue esbranquiçado do povo-boi. Ainda se fosse somente cretinice! A
dialéctica entre apocalípticos e integrados é viva e em boa saúde, e é curioso
que estar-lhe dentro parece estar o próprio Eco, o qual há 50 anos a tinha
criticado.
E aqui entra em jogo
um profeta pouco escutado, qual é José Ortega y Gasset que em “Rebelião das Massas”, 1930, tinha visto
justo: todos somos cretinos e sapientes ao mesmo tempo.
Um especialista de
física subatómica balbuciará parvoíces sobre políticas internacionais. Um
Prémio Nobel em literatura intervirá com uma embaraçante cara zangada sobre
escolhas financeiras planetárias. Um engenheiro maturo palpitará, lendo poesias
de quatro patacas à namorada.
Isto é, não existe
sabichão que não seja embaraçantemente tonto fora do seu terreno de
investigação científica; não há pensador heidggerianamente autêntico que saiba
fazer funcionar um smartphone da última geração."
"Todavia e a este
ponto, hoje todos se encontram ardentemente nas redes sociais. E não é somente
um problema de números. Desconjuntam-se documentos poeirentos. Recompõem-se
paradigmas adquiridos. Por um lado, Facebook, Twitter e sócios doam a quem quer
que seja a responsabilidade de palavra, assumida com ligeireza e insipiência,
dando livre curso às opiniões mais duras e mais puras. Por outro lado, os
chamados “média 2.0” redimensionam todos e súbito, nivelando cada
biodiversidade cultural dentro das grades pré-constituídas de um format de adolescentes. E tudo fica registado, escrito, arquivado
ao acaso, porém, conservados.
Fale quem pode, os
outros, para trás do quadro preto: a fim de fazer companhia àquele idiota
Funes." - Gianfranco Marrone; La Stampa - 09 / 09 / 2016
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