terça-feira, fevereiro 04, 2014

EM PROL DA CULTURA

Ou “Elogio dos saberes inúteis”, título da entrevista de Maria Mantello a Nuccio Ordine, autor de um livro de grande sucesso editorial: “A Utilidade do Inútil” (entrevista publicada na revista literária MicroMega - 20/01/2013).

“A Utilidade do Inútil”, na Itália e em três meses, já conta com oito edições; na Espanha, três edições em 4 semanas; na França, já atingiu a 4.ª edição. Estão em curso traduções na Alemanha, Grécia, Coreia, Roménia.
Em Portugal? Não encontrei nenhuma informação. Oxalá seja editado no nosso país, pois é uma leitura fortemente recomendável.

Nuccio Ordine é um filósofo, professor catedrático de Literatura Italiana na Calábria, grande estudioso de fama internacional do Renascimento e da filosofia de Giordano Bruno.

No preâmbulo da entrevista, Maria Mantella escreve: “A Utilidade do Inútil” é um ensaio intenso que se expande através dos âmbitos mais diversos do conhecimento, a fim de tecer o elogio da cultura contra a desagregação social, induzida pela idolatria mercantilista que pretende indivíduos obsequiosos e obedientes: útil engrenagem para o "usa e deita fora" do capitalismo selvagem”.

Transcrevo uma pequena parte da entrevista ao ilustre professor Nuccio Ordine: entrevista longa e abrangendo onze grandes temas.

Primeira pergunta: “A Utilidade do Inútil” é um livro político, um manifesto contra a agressividade do liberalismo selvagem que reduz tudo a um grande supermercado de consumo, incluindo a cultura. Um livro para estimular a resistência activa?

Resposta: É já de conhecimento geral que cada singular aspecto da vida dos homens esteja contaminado pelo utilitarismo, pela necessidade desenfreada de obter lucro. Qualquer gesto efectuado ou por efectuar e qualquer palavra pronunciada ou a pronunciar são postos ao serviço de um ganho, de um benefício pessoal. Eis por que cada coisa tem um preço e tudo se pode comprar. Basta ter dinheiro e todas as estradas se abrem.
Porém, trata-se de uma deriva que está a corromper e a desumanizar a humanidade. E de tal ordem que considera o homem em si mesmo e os seus sentimentos como uma mercadoria.

A lógica nefasta do utilitarismo chegou a invadir espaços onde nunca deveria ter acesso. Pensemos na instrução (as escolas e a universidade reduzidas a empresas e os estudantes a clientes); na saúde (onde também os doentes são considerados clientes, puros números ao serviço de orçamentos a equilibrar e de interesses lobísticos que devem continuar a ser alimentados); nos eventos culturais (a promoção das chamadas “belezas fáceis”, aquelas belezas superficiais que não exigem esforços e perdas de tempo).
Este livro é um grito de alarme contra um fenómeno que se alastra e está a invadir as nossas vidas. É uma tentativa de reabilitação das palavras como “gratuito” e “desinteressado”, que, actualmente, não fazem parte do nosso léxico quotidiano. (o sublinhado é meu)

Segundo tema: Útil/inútil, inversões perspécticas para recolocar no centro o ser humano e o seu direito à dignidade.

Resposta: Procurei dar a palavra aos clássicos, a fim de convidar os leitores a escutar as suas vozes. De Platão a Ítalo Calvino – filósofos, literatos, cientistas – teceram, ao longo dos séculos, um elogio dos saberes inúteis, isto é, aqueles saberes que não trazem proveitos e que, portanto, são considerados inúteis numa sociedade onde contam apenas o dinheiro e o lucro. Mas estes grandes pensadores recordam-nos, sobretudo, que os homens têm necessidade precisamente do que é considerado inútil: porque a literatura, a arte, a filosofia, a música, a investigação científica de base são necessárias para nutrir o espírito, para nos melhorar, para tornar mais humana a humanidade.
Em conclusão, o livro ajuda a reflectir sobre a utilidade do inútil e, naturalmente, sobre a utilidade do útil (quantas coisas que nos são despachadas por utilíssimas se revelam, pelo contrário, perfeitamente inúteis?).
Somente no interior de um universo que esteja longe de qualquer forma de utilitarismo, é fácil compreender que a dignidade do homem não se mede pela quantidade de dinheiro que se possui, mas mede-se exclusivamente pelos grandes valores que animam as nossas vidas: o amor pelo bem comum, pela justiça, pela solidariedade humana, pela tolerância, pela liberdade, por todas as formas de pluralismo (político, linguístico, cultural, religioso, etc.)

Oitava pergunta: Declarou várias vezes que é injusto fazer pagar a crise às classes mais débeis e às instituições que se ocupam da instrução e da cultura em geral.

Resposta: Não é verdade que em tempo de crise tudo é permitido. O tribunal de Contas revelou que nós (italianos) despendemos 150 mil milhões de euros por ano devido à corrupção. Temos alguns políticos e alguns funcionários que rapinam as caixas do Estado para acumular dinheiro, enriquecendo-se e enriquecendo os próprios familiares. Bastaria pôr um freio à corrupção e evitar-se-ia de fazer pagar às classes mais débeis uma crise determinada, sobretudo, pelos bancos e pela finança.

Usei a belíssima metáfora de Shakespeare para explicar que, hoje, os governos pedem a libra de carne viva de cidadãos inocentes que são expropriados de qualquer direito e dignidade humana. Quando o homem é constrangido a pagar a dívida com a carne viva, significa que o ser humano se tornou em mercadoria e que a humanidade se desumaniza cada vez mais.
O mesmo discurso vale para o mundo empresarial. Não é possível tolerar a política de muitas empresas que privatizaram o lucro e socializaram as perdas. Como se atrevem a lançar apelos à solidariedade da classe operária e dos dependentes aqueles empresários que, depois de ter depredado as próprias empresas, falsificando as contas para transferir ilicitamente dinheiro para os paraísos fiscais, agora despedem, sem piedade, centenas de trabalhadores inocentes?
São comoventes os discursos de Adriano Olivetti, quando reivindicava, entre os fins principais de uma empresa, o de criar liberdade, beleza, felicidade, instrução, cultura e bem-estar para todos.

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Como acima escrevi, a entrevista é extensa e os argumentos de Nuccio Ordine, todos eles, são de grande interesse. Talvez num próximo post voltarei a este assunto.