domingo, julho 12, 2009

SE NEM O TRIBUNAL CONSTITUCIONAL ESCAPA AO CARCOMA!

Na expressão “Sentido de Estado”, quando este sentido existe e é sólido – o que acontece nas democracias de grandes tradições - sempre vi um conteúdo semântico de uma grande riqueza e complexidade. Porém, quando o ignoram ou enxovalham, a democracia vai-se estiolando e torna-se no exclusivo terreno de conveniências para quem tem a vara do comando.

Italia: con una buena siesta se pasa todo” – artigo de Shukri Said, no jornal El País de sexta-feira, dia 10.
Descreve e analisa os múltiplos casos negativos que continuamente revelam a total ausência de sentido de Estado, desprezando o respeito pelas instituições, consideradas apenas como um estorvo.
Numa só frase, a articulista condensou a vasta matéria que desenvolveu: “O carcoma que está corroendo a Itália é o berlusconismo”.

Para mim não é novidade nem para quem segue com apreensão o que se passa naquele País.

O carcoma acima referido, que eu classifico como enxovalhamento da dignidade de Estado, afectou dois dos quinze membros do Tribunal Constitucional italiano.

Na Itália, O Tribunal Constitucional (Corte Costituzionale) é composto por quinze juízes - em Portugal temos apenas treze; não somos supersticiosos!
Cinco são eleitos pelo Presidente da República; cinco, pelos dois ramos do Parlamento; cinco, pelos “altos graus da magistratura” (Supremo Tribunal de Justiça, Tribunal de Contas, Conselho de Estado).
A escolha deve ser feita entre juristas: professores de direito, advogados, magistrados.

Devo dizer que vejo com uma certa desconfiança as eleições de cinco destes juízes conselheiros pelos membros do Parlamento.
Conhecendo os maus hábitos do compadrio e da troca de favores entre as várias facções políticas, corre-se o risco de enviar, para aquele sancta sanctorum das regras jurídicas, elementos que não são dignos de ali dar entrada.
Visto que o Tribunal Constitucional é a trave mestra do Estado de Direito; os seus componentes são os máximos intérpretes e defensores das normas constitucionais, além da “sapiência jurídica e sageza política”, devem demonstrar uma dignidade e postura cristalinas.
Atitudes fora destes cânones e que possam desprestigiar uma tão alta instituição são absolutamente inaceitáveis. Mas verificam-se. E sucedeu.

(…)Que mais deve suceder para que se compreenda o aviltamento “jurídico-normativo", no qual o berlusconismo arrastou o Estado de Direito, transformando os “servidores” irresponsáveis em co-autores das suas leis ad personam?”(…) – Massimo Giannini, La Repubblica.

O caso que motiva este comentário, e tantos outros artigos do mesmo teor, causou enorme polémica. Adormeceu durante esta semana da cimeira dos G8. A presidência e espectacularidade da organização fizeram desviar as atenções. Espero que venham de novo à superfície, porque penso se trate de um episódio desconcertante. Mas expliquemos.

O Tribunal Constitucional deve reunir-se nos primeiros dias de Outubro, a fim de avaliar a constitucionalidade da lei que estabelece a suspensão dos processos penais, em relação às primeiras quatro autoridades do Estado, durante o respectivo mandato: Presidente da República; Primeiro-Ministro; Presidente do Senado; Presidente da Câmara dos deputados.
Mais uma lei ad personam em socorro de Berlusconi.

Esta lei foi aprovada com inusitada velocidade, após a tomada de posse do actual Governo. Havia urgência em pôr o primeiro-ministro a salvo de uma provável sentença de corrupção: sempre o famoso caso do advogado Mills, condenado a 4 anos e meio.
Enquanto o Tribunal Constitucional não se pronuncia, o Tribunal de Milão teve de processar apenas o corrupto (Mills), deixando em suspenso o co-imputado e corruptor (Berlusconi).
Como sempre se proclama inocente e vítima da “magistratura comunista” (assim classifica quem “ousa” processá-lo), tem a faculdade de renunciar à suspensão dos processos...
Renunciar!!? Vade retro!...

Continuo a insistir que acho estes factos infinitamente mais graves que as taras sexuais daquele homem, embora nojentas e execráveis numa figura pública.

O semanário L’Espresso publicou um serviço, em fins de Junho, sobre um famoso jantar em casa de um juiz do Tribunal Constitucional, Luigi Mazzella, cujos hóspedes ilustres provocaram uma onda de críticas severas e escandalizadas.
Quem eram esses hóspedes especiais? Ei-los: o Primeiro-Ministro Berlusconi, o ministro da Justiça, o subsecretário à Presidência do Conselho, outro juiz conselheiro (Paolo Maria Napolitano), os dois presidentes das comissões "Assuntos Constitucionais" do Parlamento (Câmara e Senado), além das respectivas esposas, obviamente.

Estavam reunidos, num jantar muito cordial, a fim de discutirem a reforma do Conselho Superior da Magistratura e outras reformas afins. A sério?!...

Se a lei – chamada “Lodo Alfano” – for declarada inconstitucional, Berlusconi deverá submeter-se a juízo. Mas os seus advogados são habilíssimos em conduzir os processos perigosos para o arquivo dos prescritos.

Entretanto, será possível acreditar na imparcialidade e seriedade dos dois juízes em questão?

Qualquer magistrado bem consciente da dignidade do cargo que ocupa, jamais organizaria reuniões deste género. Porém, o juiz conselheiro Luigi Mazzella, com uma arrogância e trivialidade dignas de uma pessoa sem pundonor, reagiu com uma carta aberta ao grande amigo Berlusconi, enviada aos jornais (tudo combinado, segundo dizem).
Na minha casa convido quem eu quero; não é a primeira vez nem será a última.. etc., etc.
Quando seria tão precioso, o demeritíssimo juiz preferiu espezinhar o silêncio!

O outro colega e hóspede, à semelhança do hospedeiro, não ficou atrás em declarações inoportunas e sem a mínima noção que ofendiam e feriam a credibilidade da insigne instituição de que fazem parte.

Levantaram-se vozes, exigindo que se demitam; outras aconselham a abstenção.
Estou com curiosidade e interesse em saber como se exprimirá a “Corte Costituzionale”, em Outubro.
Certamente que estes dois demeritíssimos não facilitaram o trabalho rigoroso dos restantes treze meritíssimos juízes.

Recordando as tão discutidas pressões do caso Freeport, não posso deixar de pensar que até nisto somos de brandos defeitos! Nunca exageramos.
Alda M. Maia

5 Comments:

At 3:16 da tarde, Blogger Quint said...

Noutros tempos a expressão “sentido de estado” fazia algum sentido. Muito até.
Porque os homens públicos tinham uma visão do porvir, sabiam os caminhos que lá conduziriam e eram capazes de arcar com as consequências dos seus actos.

Na Europa dos nossos dias não vejo um só governante que tenha esse dom.
Penso que Gordon Brown poderia andar por lá, não muito perto, não se desse o caso de ter chegado tarde de mais e de não saber como colher as boas graças dos meios de Comunicação Social que, pelos dias que vão correndo, ditam cada vez mais a sorte dos fracos políticos que nos calharam.

Indo um pouco mais atrás, e para nos quedarmos por tempos mais recentes, Helmut Kohl, François Mitterand e Felipe Gonzalez tiveram a seu modo um pouco desse sentido de Estado.
Um porque soube descortinar que a reunificação alemã era não só desejável e desejada por muitos sectores da Nação, como possível. E dedicou parte das suas energias a esse desiderato.
Outro porque se dedicou à cousa pública como um príncipe florentino, sempre enigmático, sempre cruel quando necessário, reservado até à medula tendo ocultado da França a sua doença e uma filha, mas vendo a mesma França perdoar como só se perdoa a um grande amor.
E o último porque compreendeu que para levar a Espanha ao coro da nações como estado e país respeitado tinha de percorrer um caminho nem sempre fácil; veja-se que onde foi preciso aumentar ao desemprego o fez sem concessões.

Contudo, nenhum deles tinha na sua missão e na sua vida aquele dom que fez com que, por exemplo, Konrado Adenauer tenha corporizado o chamado milagre alemão. Ou a verticalidade de um Churchill (e mesmo este era, nalguns aspectos, um estafermo) que se limitou a prometer “sangue, suor e lágrimas”!
Aliás, hoje, político que lhe desse para isto, era derrotado sem apelo, nem agravo.

E isto porque as nossas sociedades também são feitas de outra fibra. Falta-lhes aquele dom de saber que nem tudo é possível, e que mesmo o possível exige, por vezes, sacrifício.
Hoje queremos tudo e ali, servido na hora.

De certa forma pegamos no grito de Jim Morrison, quando este dizia “we want the world, and we want it now”, despimos o mesmo do conceito de solidariedade e equidade, vestimo-lo com o pior dos individualismos e aí estamos nós prontos a apontar o dedo, incapazes de assumir as nossas responsabilidades e sempre prontos a deixar que qualquer quimera nos fascine e cegue!

A Itália, neste caso, é apenas um paradigma dos tempos modernos. Entregou-se nos braços de um histriónico, um fraco que se esconde por detrás do seu poder e do seu dinheiro, que se dá ares de homem másculo (e bem sabemos que o típico homem do sul adora essas demonstrações de aparente poder sexual, ao mesmo tempo que até entre o sector feminino muitas não desdenhariam de colher a sua atenção, um ou outro favor em troca de um ou outro favor!) e se permite tratar todo um país como uma coutada sua.

Culpa de quem?
Dos italianos, em primeira instância, e de um sistema que não lhes deixou outra alternativa.
Resta, contudo, a certeza que a Itália sempre conseguiu funcionar e desenrascar-se apesar do Governo. Valha-nos, ao menos, isso!

 
At 5:42 da tarde, Blogger Alda M. Maia said...

Lendo com atenção - aliás, como sempre faço - tudo o que escreveu, vejo passar-me diante da memória todas essas figuras. Uma que me inspirou sempre grande simpatia é Felipe Gonzales.
Bom político, excelente guia de quem saía do letargo franquista. Se Aznar prosseguiu com sucesso, já Gonzales lhe tinha facilitado o caminho. Mas sucede sempre assim. Uns têm a coragem de fazer as reformas necessárias; outros colhem os frutos.

Estou perfeitamente de acordo que, presentemente, as figuras políticas mundiais são de uma mediocridade exasperante. Bem, há sempre excepções. Nestas, incluo Obama. Gosto deste presidente. Se bem que, depois de Bush, bastava pouco para encontrar melhor. Mas não é o caso: Obama é, verdadeiramente, uma figura política que entusiasma. Aguardemos.

Também não me desagrada Brown. Se a economia inglesa brilhou, no governo Blair, foi Brown o principal obreiro, mas ninguém recorda isso. O defeito dele é não ter jeito para “vender” bem as suas qualidades e, em política, frequentemente, é como nas feiras, não lhe parece?

Quanto a Berlusconi, se alguém mo aponta como um político, deito-lhe a língua de fora. Aquilo um político??!!!! É simplesmente um aventureiro que invadiu a política… mas o povinho vota-o!
Se pudesse seguir os telejornais italianos, quase todos controlados pelos seus homens de confiança, compreenderia imediatamente o sucesso daquele indivíduo.

Relativamente às odaliscas que alegravam as suas festas – puttanopoli, assim se lia, e lê, no que escreve Marco Travaglio, “l’enfant terrible” do jornalismo italiano - grande parte esperava colher proveitos: ir para o Parlamento Europeu ou o Parlamento de casa, por exemplo!
É triste, não acha?

A esquerda tem muitas culpas neste estado de coisas.
A presto
Alda

 
At 8:42 da tarde, Anonymous Anónimo said...

E depois de ter lido estes dois "gigantes" da política europeia e até mundial, só me resta agradecer a ambos, a grande lição que me deram e pela qual fiquei muito satisfeita. :)

Para uma leiga. un pizzico di informazione, ed tutto precioza. Erro com certeza, pois não sei italiano!

Agora o que eu não concordo é que tenhamos brandos costumes, quanto a brandos defeitos, na Justiça, já vi que existem, e que se a nova lei, para eleger o colectivo de Juízes, do Tribunal Constitucional Português, vai avante, de brandos defeitos, passamos a defeitos atrozes.
A Democracia estará ainda mais comprometida, ou estarei em erro??

Um beijinho e obrigada

 
At 11:13 da tarde, Blogger Alda M. Maia said...

Antes de mais, corrijo o nome de Felipe González, que errei.
Segundo, menina Fada dos Bosques, “un pizzico di informazione” está muito bem escrito. No “precioza” é que trocou um bocadinho as consoantes: será melhor escrever “preziosa”. Anda a estudar italiano? P’ra frente! Quando por aqui passar, terá muito material didáctico que a ajudará.
Somos de brandos defeitos, pois “atão”… se nos compararmos com o que vai por esse mundo fora.
Um beijinho

 
At 3:00 da tarde, Blogger Quint said...

Obama?
Ainda não me convenceu plenamente. Não basta ser um bom orador, pois é preciso acompanhar a retórica de acção e firmeza.

Até ao momento, tirando um ou outro laivo de rasgo, noto-lhe falta de substância, de conteúdo.
A propósito, o que dizer de Obama ter ido ao Gana afirmar que era tempo dos dirigentes e dos próprios africanos se deixarem de lamentar e de culpar o passado por todos os males?

Que tem razão no que diz, mas já antes outros o fizeram e foram apodados de racistas. Não podemos olhar a quem apenas pela cor da pele ou porque antes dele quem esteve na Casa Branca pouco mais era que um néscio!

Gordon Brown, como diz, e eu escrevi, chegou tarde e a má horas ao encontro com o destino; está a padecer pela fraca imagem e pelos desmandos de Tony Blair, político da nova onda onde a imagem vale 1.000 palavras e onde o provérbio “olhai para o que digo, não para o que faço” se aplica como luva de peliça.

Sobre o careca que aí por Itália vai governando e se vai governando, o energúmeno faz-me lembrar um outro estafermo que ocupou o Kremlin e andava sempre bêbado!

Se a Esquerda tem muitas culpas neste estado de coisas?
Tem e muito. Primeiro porque alguma não se soube adaptar à nova realidade e apresentar alternativas realmente credíveis, válidas e aplicáveis. Depois, porque tomada por arrivistas se limitou a querer o poder pelo poder. Nesse pormenor, Tony Blair, quanto a mim, é um dos grandes culpados pois rapidamente vendeu a alma ao Diabo.

 

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