UMA EUROPA SOLIDÁRIA
E COOPERANTE?
NÃO COINCIDE COM OS INTERESSES ALEMÃES
Nos últimos tempos, multiplicaram-se
as análises sobre a crise europeia e os artigos de opinião sobre o papel da
política alemã.
A este modo de impor
regras de austeridade – cegas e estéreis, como se tem verificado - aos países
em grave crise económica e financeira há quem lhe chame um “neocolonialismo da União Europeia modelado
pela Grande Alemanha da Senhora Merkel”. Infelizmente, não se afasta da
verdade.
Novas iniciativas ou
programas anticrise que a União Europeia deva adoptar serão tomadas em linha de
conta se o Bundesbank ou o Governo alemão entenderem que convém à Alemanha. Se
assim não for, cada um que se arranje.
“Processo à Alemanha que perdeu a memória”: este é o título de um artigo
de Barbara Spinelli (filha de Altiero Spinelli, um dos
fundadores da União Europeia) publicado sexta-feira passada no jornal La
Repubblica.
Evocando o que
sucedeu na primeira metade do século passado, analisa os factos históricos e as
respectivas consequências.
Há quem critique
estas evocações, pois não é oportuno insistir sobre as responsabilidades
alemãs; já decorreram décadas e é preferível olhar em frente.
Não concordo. A
História tem tempos longos e o horror do que se passou pode considerar-se
relativamente recente, pois ainda há sobreviventes desse passado. Ademais,
perante o comportamento altaneiro e egoísta do governo Merkel que pretende dar
lições a quem não sabe fazer “os deveres de casa”, acho muito oportuno
relembrar-lhe o que foi o perdão das dívidas e das indemnizações que a Alemanha
deveria pagar pelas ruínas que o seu complexo de superioridade infligiu à
Europa na segunda Guerra Mundial.
Devemos concluir que
esse complexo ressuscitou?
*******
Transcrevo alguns
parágrafos do artigo de Barbara Spinelli:
“Convém sempre
olharmos para trás e redescobrir donde vimos, quando uma crise económica,
política e também mental tende a revolutear sobre si mesma e a gangrenar.
Convém saber como e porquê teve início a unificação europeia, depois de uma
guerra que devastou o Continente. Como a Alemanha foi de novo acolhida pelas
democracias, de novo legitimada e, podendo reerguer-se, conheceu um formidável crescimento
económico. Como, enfim, este crescimento tocou o ápice, na grande crise dos
últimos anos: uma crise que ameaça a União, a sua moeda única e, por fim, a sua
paz interna.
(…) Os doze anos do
nazismo são recordados constantemente, mas não como se resvalou no horror, como
ao desastre da inflação se acrescentou o da deflação, e também não se recorda a
sapiência com a qual se saiu de 1945.
Resvalou-se no horror
por vários motivos (culturais, políticos, psicológicos), mas também por
condutas económicas loucas. À crise de 1929, os últimos governos de Weimar,
prostrados pelo trauma inflacionista e pelas reparações, responderam –
especialmente sob o chanceler Brüning, em 1932/33 – com uma pesada deflação que
empobreceu ainda mais a população.
Exactamente como
acontece hoje, os doutrinários da austeridade apostaram tudo sobre as
exportações, descurando o consumo interno. Arrasado, o país que tinha dado a
Hitler 18,3% em 1930, deu-lhe 33% em 1932 e 43,9% em 1933, caindo nas mãos do
demagogo que prometia trabalho, bem-estar e sangue. «Deutschland über alles» era o lema: a Alemanha acima de tudo.
Tudo isto teve fim. O
primeiro chanceler do pós-guerra, Adenauer, escolheu a Europa e a paz com a
França de De Gaulle. Seguiu-se, como vimos, a clarividência dos vencedores: em
1953, bem 65 Estados consentiram no corte das dívidas de guerra alemãs (entre esses
a Itália e Grécia, países- cobaia das políticas hodiernas de compressão dos
rendimentos), permitindo aos alemães o extraordinário milagre económico dos
decénios sucessivos.
Sobre a génese
daquele milagre caiu o esquecimento, e o mesmo esquecimento explica o porquê de
uma liderança alemã que de facto existe, mas que não é assumida com uma solidariedade
lúcida, além de um exigente sentido de responsabilidade.
Efectivamente,
algumas doutrinas económicas dos velhos tempos persistiam e persistem,
especialmente a doutrina à qual foi dado o nome «casa em ordem»: antes que se efectue
a cooperação internacional e supranacional, ocorre que cada país, por si só,
corrija as próprias contas.
O chamado «ordoliberalismo
alemão» tinha criado raízes entre as duas guerras na escola de Friburgo, foi adoptado,
depois dos anos 45, pelo futuro chanceler Erhard;
nos últimos seis anos de crise assumiu a fisionomia de um dogma.
Sabemos
como os dogmas fecham as mentes às alternativas, assim como às soluções.
A ofensiva de grande parte
das elites alemãs contra o Banco Central europeu é o efeito desta doutrina, subterraneamente
ainda impregnada de nacionalismo.
(…) O boom das
exportações, provenientes nos últimos seis anos da Alemanha, contribuiu
enormemente para a formação de bolhas financeiras na periferia Sul, em
consequência de ingentes fluxos de capitais não compensados por importações
adequadas. Explica-o bem o economista Ulrich Schäfer na «Sueddeutsche Zeitung» de 13 de Novembro: as críticas destes dias ao
irresistível export alemão – pela
Comissão Europeia, pelo FMI, pelo Sul da Europa – são justificadas, e a surdez
alemã é grave.
É um boom que, na
Alemanha, é paralelo a um consumo baixo, à precarização que aumenta, à
exiguidade das importações; logo, a uma incúria da União.
Os erros cometidos
nos anos 30 tendem a reproduzir-se.
Sair do impasse é
possível, se a memória se põe em movimento. Se, ainda uma vez, os países
vencidos – esmagados pela dívida – são amparados por uma cooperação
internacional que se active durante e não depois de «os deveres de casa».
(…) Como no passado, a Europa necessita de um
plano Marshall (propõem-no os sindicatos alemães) e de uma conferência sobre as
dívidas da periferia Sul, similar àquela que em 1953 cancelou, generosamente, as
dívidas alemãs. Necessita que termine a idade dos dogmas e dos falsos soberanos
nacionais, em Berlim como em Paris. Porque naqueles dogmas está o seu mal; é a
origem do seu presente cativeiro na desmemória e no pecado de perfecta nolitio, de completa
não-vontade”.
Barbara
Spinelli - La Repubblica, 15 / 11 / 2013
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