segunda-feira, novembro 18, 2013

UMA EUROPA SOLIDÁRIA E COOPERANTE?
NÃO COINCIDE COM OS INTERESSES ALEMÃES  

Nos últimos tempos, multiplicaram-se as análises sobre a crise europeia e os artigos de opinião sobre o papel da política alemã.
A este modo de impor regras de austeridade – cegas e estéreis, como se tem verificado - aos países em grave crise económica e financeira há quem lhe chame um “neocolonialismo da União Europeia modelado pela Grande Alemanha da Senhora Merkel”. Infelizmente, não se afasta da verdade.

Novas iniciativas ou programas anticrise que a União Europeia deva adoptar serão tomadas em linha de conta se o Bundesbank ou o Governo alemão entenderem que convém à Alemanha. Se assim não for, cada um que se arranje.  

Processo à Alemanha que perdeu a memória”: este é o título de um artigo de Barbara Spinelli (filha de Altiero Spinelli, um dos fundadores da União Europeia) publicado sexta-feira passada no jornal La Repubblica.
Evocando o que sucedeu na primeira metade do século passado, analisa os factos históricos e as respectivas consequências.

Há quem critique estas evocações, pois não é oportuno insistir sobre as responsabilidades alemãs; já decorreram décadas e é preferível olhar em frente.
Não concordo. A História tem tempos longos e o horror do que se passou pode considerar-se relativamente recente, pois ainda há sobreviventes desse passado. Ademais, perante o comportamento altaneiro e egoísta do governo Merkel que pretende dar lições a quem não sabe fazer “os deveres de casa”, acho muito oportuno relembrar-lhe o que foi o perdão das dívidas e das indemnizações que a Alemanha deveria pagar pelas ruínas que o seu complexo de superioridade infligiu à Europa na segunda Guerra Mundial.
Devemos concluir que esse complexo ressuscitou? 

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Transcrevo alguns parágrafos do artigo de Barbara Spinelli:

“Convém sempre olharmos para trás e redescobrir donde vimos, quando uma crise económica, política e também mental tende a revolutear sobre si mesma e a gangrenar. Convém saber como e porquê teve início a unificação europeia, depois de uma guerra que devastou o Continente. Como a Alemanha foi de novo acolhida pelas democracias, de novo legitimada e, podendo reerguer-se, conheceu um formidável crescimento económico. Como, enfim, este crescimento tocou o ápice, na grande crise dos últimos anos: uma crise que ameaça a União, a sua moeda única e, por fim, a sua paz interna.
(…) Os doze anos do nazismo são recordados constantemente, mas não como se resvalou no horror, como ao desastre da inflação se acrescentou o da deflação, e também não se recorda a sapiência com a qual se saiu de 1945.

Resvalou-se no horror por vários motivos (culturais, políticos, psicológicos), mas também por condutas económicas loucas. À crise de 1929, os últimos governos de Weimar, prostrados pelo trauma inflacionista e pelas reparações, responderam – especialmente sob o chanceler Brüning, em 1932/33 – com uma pesada deflação que empobreceu ainda mais a população.
Exactamente como acontece hoje, os doutrinários da austeridade apostaram tudo sobre as exportações, descurando o consumo interno. Arrasado, o país que tinha dado a Hitler 18,3% em 1930, deu-lhe 33% em 1932 e 43,9% em 1933, caindo nas mãos do demagogo que prometia trabalho, bem-estar e sangue. «Deutschland über alles» era o lema: a Alemanha acima de tudo.

Tudo isto teve fim. O primeiro chanceler do pós-guerra, Adenauer, escolheu a Europa e a paz com a França de De Gaulle. Seguiu-se, como vimos, a clarividência dos vencedores: em 1953, bem 65 Estados consentiram no corte das dívidas de guerra alemãs (entre esses a Itália e Grécia, países- cobaia das políticas hodiernas de compressão dos rendimentos), permitindo aos alemães o extraordinário milagre económico dos decénios sucessivos.
Sobre a génese daquele milagre caiu o esquecimento, e o mesmo esquecimento explica o porquê de uma liderança alemã que de facto existe, mas que não é assumida com uma solidariedade lúcida, além de um exigente sentido de responsabilidade.

Efectivamente, algumas doutrinas económicas dos velhos tempos persistiam e persistem, especialmente a doutrina à qual foi dado o nome «casa em ordem»: antes que se efectue a cooperação internacional e supranacional, ocorre que cada país, por si só, corrija as próprias contas.
O chamado «ordoliberalismo alemão» tinha criado raízes entre as duas guerras na escola de Friburgo, foi adoptado, depois dos anos 45, pelo futuro chanceler Erhard; nos últimos seis anos de crise assumiu a fisionomia de um dogma.
Sabemos como os dogmas fecham as mentes às alternativas, assim como às soluções.
A ofensiva de grande parte das elites alemãs contra o Banco Central europeu é o efeito desta doutrina, subterraneamente ainda impregnada de nacionalismo.

(…) O boom das exportações, provenientes nos últimos seis anos da Alemanha, contribuiu enormemente para a formação de bolhas financeiras na periferia Sul, em consequência de ingentes fluxos de capitais não compensados por importações adequadas. Explica-o bem o economista Ulrich Schäfer na «Sueddeutsche Zeitung» de 13 de Novembro: as críticas destes dias ao irresistível export alemão – pela Comissão Europeia, pelo FMI, pelo Sul da Europa – são justificadas, e a surdez alemã é grave.

É um boom que, na Alemanha, é paralelo a um consumo baixo, à precarização que aumenta, à exiguidade das importações; logo, a uma incúria da União.
Os erros cometidos nos anos 30 tendem a reproduzir-se.  

Sair do impasse é possível, se a memória se põe em movimento. Se, ainda uma vez, os países vencidos – esmagados pela dívida – são amparados por uma cooperação internacional que se active durante e não depois de «os deveres de casa».

 (…) Como no passado, a Europa necessita de um plano Marshall (propõem-no os sindicatos alemães) e de uma conferência sobre as dívidas da periferia Sul, similar àquela que em 1953 cancelou, generosamente, as dívidas alemãs. Necessita que termine a idade dos dogmas e dos falsos soberanos nacionais, em Berlim como em Paris. Porque naqueles dogmas está o seu mal; é a origem do seu presente cativeiro na desmemória e no pecado de perfecta nolitio, de completa não-vontade”.
Barbara Spinelli - La Repubblica, 15 / 11 / 2013