PARTAMOS DA PALAVRA SAUDADE
Não sei e é defeito nosso, que não sabemos ou nunca nos esforçámos por dar a conhecer quem é, o que é e quantos séculos conta este Velho País, mas é desconsolante verificarmos que existe uma profunda ignorância a nosso respeito. E limitemo-nos aos países europeus.
Recordo que, em Turim, uma senhora perguntou-me se em Portugal se falava francês. Outras pessoas, tomando conhecimento da minha origem, logo esclareciam que também tinham alguns conhecimentos de espanhol. A minha resposta era instantânea: Desculpe, mas eu falo a língua portuguesa.
Não fiquei surpreendida, portanto, quando li num jornal italiano, de alguns anos atrás, que o termo saudade era uma palavra brasileira e que só no Brasil podia ter nascido este lindo vocábulo.
Não me surpreendi, mas fiquei de certo modo irritada: não somente com esta rapina ao idioma que daqui se expandiu e é comum a vários países, como também com o índice de ignorância, imperdoável num falante de uma língua co-irmã da nossa.
Nestes últimos dias, pus-me a folhear uma das preciosas heranças paternos, fruto de buscas e descobertas nos alfarrabistas do Porto: “Nova Selecta Portugueza”, colligida, annotada por João M. Moreira e João M. Corrêa, professores do Lyceu Central do Porto; 5.ª edição correcta – 1902. Nas notas explicativas, deparei com o vocábulo saudoso. Transcrevo, respeitando a grafia, o que explicaram sobre esta palavra.
Saudoso: que tem ou causa saudade, ou lembrança dolorosa, desejo de um bem, de logar, de pessoa que está ausente. A palavra saudade vem do latim solitas, atis, que deu em portuguez soledade, soedade, suydade, saudade […] O primeiro que definiu saudade foi D. Duarte no “Leal Conselheiro”, pág. 151, onde se lê: “Suydade propriamente he sentido (sentimento) que o coraçom filha por se achar partido (apartado, separado) de presença de alguma pessoa ou pessoas que muito por affeiçom ama”, etc. O coração apartado, separado é o que está só, solus, e d’aqui solitas, atis, saudade.
Por uma curiosa associação de ideias, a suydade de D. Duarte e a “saudade brasileira” vieram-me à lembrança, lendo o artigo de Vasco Teixeira, administrador e director do Grupo Porto Editora, na edição do “Público” de sábado passado: “No meio da ponte entre o Brasil e África”.
Tudo continua a girar à volta do desastrado acordo ortográfico, com o qual “In Portogallo si parlerà brasiliano” – assim escreveram num importante jornal italiano.
Vasco Teixeira lamenta que Portugal tivesse adoptado o acordo “sem garantir o acompanhamento de Angola e Moçambique”.
Na minha opinião, não se tratou apenas de uma omissão, mas de ofender aqueles dois países, quando se foi “a reboque de uma eventual harmonização ortográfica com o Brasil” (palavras de Vasco Teixeira), descurando a importância e dignidade a que Angola e Moçambique têm direito e, aliás, onde se fala um excelente português europeu.
O administrador da Porto Editora usou certas expressões que me deixam perplexa. Acerca da importância da língua portuguesa, escreve: “Infelizmente, tendemos a esquecermo-nos da sua efectiva importância económica. […] Dossier (acordo ortográfico) que foi, como se sabe, liderado pelo Brasil”.
Não havia dúvidas sobre essa liderança nem da pouca dignidade dos nossos “comerciantes das palavras”. Mas, pior do que isso, foi a impreparação cultural e económica desses falsos curadores dos nossos interesses.
Penso seja isto o que o director da Porto Editora denuncia, embora com uma certa ambiguidade.
Continua: “Hoje, as principais editoras, com a Porto Editora à cabeça, têm nos maiores países africanos lusófonos importantes investimentos …”
[…] Não deixa de ser curioso que dependamos dos bons ofícios diplomáticos de Portugal e, em particular, do Brasil para convencer Angola e Moçambique a adoptar o acordo ortográfico e assim preservarmos um património…
Preservar um património?! A qual património se refere o Sr. Vasco Teixeira? O tal português que vai a reboque da ortografia brasileira ou o verdadeiro património que caracteriza o português que falamos e que é acarinhado e respeitado em Angola e Moçambique?
Não deveria ser este o património mais natural, legítimo e, já que se alude ao aspecto económico, mais profícuo e digno de ser curado com atenção e interesse pelas nossas editoras, tradutores, etc., etc.? Por qual razão foi menosprezada esta afinidade com os PALOP? Em benefício de quem? Em nome de quais interesses se fala?
Não acha aviltante, no que concerne convencer Angola e Moçambique, devamos, também aqui, “andar a reboque do Brasil” e que, para cúmulo do absurdo, isso implica o abastardamento do nosso património linguístico?
Seja bem claro que nada me move contra o Brasil. Cultiva os seus interesses e muito legitimamente. O que não aceito é este diminuir-se em nome de uma falsa uniformidade, de uma globalização que tudo quer explicar e de mirabolantes interesses económicos. Mas a nossa dignidade, onde a colocaram?
Não confundam dignidade com patrioteirismos, se disso são capazes.
Entre o português do Brasil, de Portugal, de Angola, Moçambique, Cabo Verde e os demais, a compreensão é perfeita, total.
A unificação que se impõe, da qual pouco ou nada se fala e ouso dizer única, situa-se na terminologia: científica, artística, tecnológica, informática. Quanto ao resto, deixem-se de argumentos tão estúpidos quão falaciosos ou mercenários. Haja vergonha e bom senso!
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