E HOJE, FALEMOS DE PÁTRIA
Houve tempos em que este vocábulo, pátria - do latim patria(m), subentendido terra(m), derivado de patrius, “paterno” - me provocava uma sensação semelhante ao estridor de unhas que arranham vidros; ecoava-me como um som quase insuportável.
O motivo deste desagrado? A intoxicação a que nos submeteram, quando jovens, pelo uso asfixiante e instrumental que dele fizeram.
Em nome da retórica ditatorial daquela época, banalizaram-no, esventrando-o do lindo e poético sentido que, no seu amplo e verdadeiro significado, esta palavra é capaz de sugerir.
Só nos anos sessenta do século passado, quando pude assimilar o que é a democracia, vivendo-a, consegui rever e remover, imparcial e totalmente, os conceitos altissonantes, mas vazios, que nos inculcaram e contra os quais nunca nos fora permitido adquirir informações que os demolissem.
Recordo que me chegavam do Brasil algumas revistas com páginas inteiramente negras, onde apenas se lia, no fundo, o fatídico: “visado pela comissão de censura”.
Com o desenrolar dos tempos, sobretudo nos países democráticos, parece que caiu uma espécie de anátema sobre este vocábulo que simboliza a “terra dos pais”. Aliás, tornou-se de moda chamar patrioteiro mesmo a quem demonstre um amor normal pelas coisas da terra onde se nasceu. Será o caso de “o gato escaldado da água fria tem medo”? Também pode ser pedantice de quem não viveu esses anos de ditadura.
Por que razão me veio tudo isto à lembrança? Reli um texto que conhecia de há longos anos. Quando o li pela primeira vez, certamente que não lhe prestei a devida atenção. Mais tarde, com as ideias claras e depuradas do lixo a que me refiro nos primeiros parágrafos, acho-o belíssimo. Ei-lo.
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A PÁTRIA
De Alexandre Herculano (1810 – 1877)
“A língua e a religião são as duas cadeias de bronze que unem, no correr dos tempos, as gerações passadas às presentes; e estes laços, que se prolongam através das eras, são a pátria.
A pátria não é a terra, não é o bosque, o rio, o vale, a montanha, a árvore, a bonina; são-na os afectos que esses objectos nos recordam na história da vida; é a oração ensinada a balbuciar por nossa mãe, a língua em que pela primeira vez ela nos disse: Meu filho!
A pátria é o crucifixo com que nosso pai se abraçou moribundo, e com que nos abraçaremos também, antes de ir dormir o grande sono, ao pé de quem nos gerou, no cemitério da mesma aldeia em que ele e nós nascemos.
A pátria é o complexo de famílias enlaçadas entre si pelas recordações, pelas crenças, e até pelo sangue. Tomai, de feito, as duas delas que vos parecem mais estranhas, colocadas nas províncias mais opostas de um país; examinai as relações de parentesco de uma com outra família, quais as destas com uma terceira, e assim por diante.
Dessa primeira, que tão estranha vos pareceu, à última, achareis um fio enredado sim, talvez inextricável, mas sem solução de continuidade.
Uma nação não é só metaforicamente uma grande família, é-o também no rigor da palavra. A oração, que consolou nossos avós e nos consola no dia da amargura, o gesto, com que imploramos a Providência, é mais veemente, quando nos foi transmitido por aqueles que pedem por nós a Deus.
É por esse meio que os homens apertam mais os laços invisíveis que os unem aos seus maiores; porque o sentimento misterioso da família, e portanto da nacionalidade, se purifica e fortalece quando se prende no céu”.
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“Porque o sentimento misterioso da família, e portanto da nacionalidade, se purifica e fortalece quando se prende no céu”.
A desgraça é quando desce á terra e, no que concerne a nacionalidade, se amolda a retóricas manipuladoras.
Na União dos 27 países europeus democráticos - ou que, taxativamente, devem ser democráticos – hoje, demarca-se a Hungria que democrática não é. De novo assistimos á corrupção do predestinado termo pátria e, o que é triste, com o apoio de uma forte maioria, furtam-se liberdades sacrossantas. Quão fácil, sempre oportuna e capciosa é esta manipulação!
E a União Europeia que faz? Excessivamente concentrada nas dívidas soberanas e défices orçamentais dos Estados-membros, não lhe sobra tempo nem imaginação para se ocupar, com vigor, destas ninharias!...
2 Comments:
Viva, Alda
Como é possível a UE passar por cima de tão importantes ninharias? Em nome duma corporação económica e financeira em que se está a transformar a Europa, fecham-se os olhos a princípios basilares da sociedade em geral.
Grande Alexandre Herculano, que de tão desiludido com o que os homens estavam a fazer da sua pátria, lá se recolheu, qual asceta, à sua Quinta de Vale de Lobos!
Um abraço, gosto imenso do seu estilo de estar na Blogosfera, a sua extraordinária forma de partilhar as suas pertinentes análises político/sociais, sempre com a mira bem afinada.
Olá, António
A Europa mandou alguns recadinhos à Hungria, mas achei tudo mais pro-forma que verdadeiro empenho contra o que por lá se passa, no que concerne métodos escassamente democráticos.
Obrigada pelas suas apreciações gentis sobre o meu modo de "blogar".
Já tenho dito várias vezes que converso com o computador. Acredite - aliás, sabe-o muito bem - que é uma excelente válvula de escape para quem gosta de conversar sobre certos assuntos que captam o nosso interesse e curiosidade, não lhe parece?
Um abraço e um beijinho à Zaida
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