A ÁGUIA FERIDA
Mais que ferida, diria que L’Aquila é uma cidade mutilada.
Pondo de parte os danos aos monumentos, praças, destruição da parte histórica, tantos edifícios desmoronados, se não esmigalhados, vejo uma mutilação, uma foice tresloucada a ceifar vidas jovens ou vidas que apenas tiveram o tempo de espreitar o mundo que as esperava, mas a quem concederam somente alguns meses.
Através de RAI1, pude seguir a cerimónia do funeral de Estado de 205 vítimas. As restantes, do total até então reconhecido, preferiram uma sepultura privada. Hoje, o número de mortos ascendeu a 294.
As telecâmaras demoravam-se sobre as longas filas de esquifes alinhados. Confesso que não conseguia desprender os olhos daqueles cofrezinhos brancos - relicários com bebés de poucos meses; crianças de dois / três anos - apoiados sobre caixões de um adulto: a mãe ou o pai.
Foram vinte os que morreram, abaixo dos dezasseis anos.
Aquelas imagens, mais que as ruínas de uma cidade prostrada, melhor me exprimiram a dimensão da tragédia e do drama das gentes de L’Aquila e das zonas circundantes.
E naquele alinhamento de vidas anuladas, não pude deixar de reflectir sobre a profusão das flores, numa distribuição que me pareceu sem equanimidade: tantas urnas atapetadas com as flores mais lindas, sobretudo as dos jovens; tantas outras, nuas, despojadas dessa homenagem ou recordadas com um modesto ramo que mãos oficiosas ali deixaram.
Talvez caixões de quem já não tinha família ou cujos familiares se encontravam nos hospitais: o número de feridos foi elevado.
As histórias tristes, comoventes, causadoras de tremendos apertos de coração e nós na garganta, são infinitas! Alguns desses episódios não as pude ler ou ouvir até ao fim: outras tragédias vividas se sobrepuseram e a angústia tornou-se insuportável.
****
Acenei a vidas anuladas: quantas destas vidas se poderiam ter salvado se, na construção de tantos prédios, tivessem seguido as normas anti-sísmicas e as leis que as regem!
Neste sentido, a lei existe e é uma das mais bem elaboradas, mas poucos as respeitaram: a corrupção e a ganância de ganhos fáceis abafaram quaisquer outras considerações.
É inacreditável que, sendo a região Abruzzo o território italiano com a mais elevada sismicidade, se tivesse desprezado um factor essencial, indispensável: rigor absoluto no respeito das regras anti-sísmicas.
Assim, eis edifícios de construção relativamente moderna que se esboroaram, como se fossem feitos de lama: quantas vítimas! Outros, ao lado, aguentaram o terramoto sem danos de relevo.
É acabrunhante o panorama de destruição e de ruína de L’Aquila (A Águia) e das demais povoações circundantes! Grande parte das casas não ruiu: simplesmente, desfez-se, esmigalhou-se.
O cimento armado, afinal, foi posto em obra já desarmado e, pior ainda, amassado com areias marinhas. Já está em andamento um inquérito.
Mas não foram só as construções de habitação civil. Não se salvou quase nenhum edifício público: o hospital, inaugurado há cerca de dez anos; a Prefeitura (Governo Civil), a Conservatória do Registo Predial, e outros.
Mais que ferida, diria que L’Aquila é uma cidade mutilada.
Pondo de parte os danos aos monumentos, praças, destruição da parte histórica, tantos edifícios desmoronados, se não esmigalhados, vejo uma mutilação, uma foice tresloucada a ceifar vidas jovens ou vidas que apenas tiveram o tempo de espreitar o mundo que as esperava, mas a quem concederam somente alguns meses.
Através de RAI1, pude seguir a cerimónia do funeral de Estado de 205 vítimas. As restantes, do total até então reconhecido, preferiram uma sepultura privada. Hoje, o número de mortos ascendeu a 294.
As telecâmaras demoravam-se sobre as longas filas de esquifes alinhados. Confesso que não conseguia desprender os olhos daqueles cofrezinhos brancos - relicários com bebés de poucos meses; crianças de dois / três anos - apoiados sobre caixões de um adulto: a mãe ou o pai.
Foram vinte os que morreram, abaixo dos dezasseis anos.
Aquelas imagens, mais que as ruínas de uma cidade prostrada, melhor me exprimiram a dimensão da tragédia e do drama das gentes de L’Aquila e das zonas circundantes.
E naquele alinhamento de vidas anuladas, não pude deixar de reflectir sobre a profusão das flores, numa distribuição que me pareceu sem equanimidade: tantas urnas atapetadas com as flores mais lindas, sobretudo as dos jovens; tantas outras, nuas, despojadas dessa homenagem ou recordadas com um modesto ramo que mãos oficiosas ali deixaram.
Talvez caixões de quem já não tinha família ou cujos familiares se encontravam nos hospitais: o número de feridos foi elevado.
As histórias tristes, comoventes, causadoras de tremendos apertos de coração e nós na garganta, são infinitas! Alguns desses episódios não as pude ler ou ouvir até ao fim: outras tragédias vividas se sobrepuseram e a angústia tornou-se insuportável.
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Acenei a vidas anuladas: quantas destas vidas se poderiam ter salvado se, na construção de tantos prédios, tivessem seguido as normas anti-sísmicas e as leis que as regem!
Neste sentido, a lei existe e é uma das mais bem elaboradas, mas poucos as respeitaram: a corrupção e a ganância de ganhos fáceis abafaram quaisquer outras considerações.
É inacreditável que, sendo a região Abruzzo o território italiano com a mais elevada sismicidade, se tivesse desprezado um factor essencial, indispensável: rigor absoluto no respeito das regras anti-sísmicas.
Assim, eis edifícios de construção relativamente moderna que se esboroaram, como se fossem feitos de lama: quantas vítimas! Outros, ao lado, aguentaram o terramoto sem danos de relevo.
É acabrunhante o panorama de destruição e de ruína de L’Aquila (A Águia) e das demais povoações circundantes! Grande parte das casas não ruiu: simplesmente, desfez-se, esmigalhou-se.
O cimento armado, afinal, foi posto em obra já desarmado e, pior ainda, amassado com areias marinhas. Já está em andamento um inquérito.
Mas não foram só as construções de habitação civil. Não se salvou quase nenhum edifício público: o hospital, inaugurado há cerca de dez anos; a Prefeitura (Governo Civil), a Conservatória do Registo Predial, e outros.
Precisamente, edifícios que se tornam indispensáveis em catástrofes desta natureza.
L’Aquila, com uma universidade importante e uma das mais antigas de Itália, é uma cidade com uma grande população estudantil.
Causou indignação o desmoronamento, como um castelo de cartas, de um edifício, propriedade da Região, onde alojavam dezenas de estudantes, provocando a morte de seis desses jovens.
Há outro aspecto que também merece compaixão: os animais domésticos perdidos que vagueiam à procura do dono. Vários ficaram prisioneiros dos escombros; muitos foram salvos.
Criou-se uma emergência veterinária e as pobres criaturas estão a receber os cuidados necessários. Entretanto, muitos donos já encontraram o seu animal de estimação.
A pilhagem tentou eleger a cidade desabitada como campo de colheita. Capturaram dois energúmenos e serão julgados “por directíssima”.
Na Itália chamam-lhes chacais, “acções de chacalagem”. Muito apropriado!
O povo italiano merece irrefutáveis elogios pela grande e espontânea generosidade que tem demonstrado.
Os serviços de socorro, pela experiência e competência que adquiriram, foram de uma tempestividade e completude de acção dignas de amplos louvores.
Quanto ao poder executivo… pela primeira vez, e para ser honesta nos meus juízos, devo elogiar o primeiro-ministro, o inefável Berlusconi!
Não gosto do homem, mas devo reconhecer que, até hoje, nesta grave circunstância, tem-se comportado com acerto.
Apreciei a sua imediata e contínua presença no local da tragédia, tentando incutir confiança às pessoas desalojadas e que tudo perderam.
Apreciei a sua atitude, durante o funeral de Estado: saiu do lugar de honra, destinado às altas autoridades presentes, e foi misturar-se com a multidão que assistia à cerimónia.
Já sei que aquele homem não dá ponto sem nó e todos os seus gestos são calculados ao milímetro. Também sei que o aproveitamento político é despudorado.
Todavia, calculados ou não, agiu bem, com um bom sentido de oportunidade.
Oxalá que, daqui por diante, não estrague tudo.
Alda M. Maia
L’Aquila, com uma universidade importante e uma das mais antigas de Itália, é uma cidade com uma grande população estudantil.
Causou indignação o desmoronamento, como um castelo de cartas, de um edifício, propriedade da Região, onde alojavam dezenas de estudantes, provocando a morte de seis desses jovens.
Há outro aspecto que também merece compaixão: os animais domésticos perdidos que vagueiam à procura do dono. Vários ficaram prisioneiros dos escombros; muitos foram salvos.
Criou-se uma emergência veterinária e as pobres criaturas estão a receber os cuidados necessários. Entretanto, muitos donos já encontraram o seu animal de estimação.
A pilhagem tentou eleger a cidade desabitada como campo de colheita. Capturaram dois energúmenos e serão julgados “por directíssima”.
Na Itália chamam-lhes chacais, “acções de chacalagem”. Muito apropriado!
O povo italiano merece irrefutáveis elogios pela grande e espontânea generosidade que tem demonstrado.
Os serviços de socorro, pela experiência e competência que adquiriram, foram de uma tempestividade e completude de acção dignas de amplos louvores.
Quanto ao poder executivo… pela primeira vez, e para ser honesta nos meus juízos, devo elogiar o primeiro-ministro, o inefável Berlusconi!
Não gosto do homem, mas devo reconhecer que, até hoje, nesta grave circunstância, tem-se comportado com acerto.
Apreciei a sua imediata e contínua presença no local da tragédia, tentando incutir confiança às pessoas desalojadas e que tudo perderam.
Apreciei a sua atitude, durante o funeral de Estado: saiu do lugar de honra, destinado às altas autoridades presentes, e foi misturar-se com a multidão que assistia à cerimónia.
Já sei que aquele homem não dá ponto sem nó e todos os seus gestos são calculados ao milímetro. Também sei que o aproveitamento político é despudorado.
Todavia, calculados ou não, agiu bem, com um bom sentido de oportunidade.
Oxalá que, daqui por diante, não estrague tudo.
Alda M. Maia
3 Comments:
Como deve imaginar, acerca de Itália sei muito pouco. Sei apenas que adorei as cidades que, como turista tive já oportunidade de conhecer. Foram todas uma revelação francamente positiva.
Contudo, esta tragédia, comoveu-me e impressionou-me muito principalmente pela impotência que sempre sinto em relação às forças com que a Natureza, por vezes, nos coloca no nosso lugar, pequenino.
Foi-me muito difícil ver todas aquelas imagens que tão gentilmente teve a amabilidade de me enviar e que eu muito agradeço, sem que as lágrimas que corressem despudoradas pelo rosto ao mesmo tempo que ia imaginando tragédias familiares. Então aqueles esquifes branquinhos...
Todavia, li no Expresso (julgo eu) exactamente aquilo que aqui refere. Provavelmente não haveria tragédia com esta dimensão se se cumprisse a lei que está prevista para a construção em regiões de risco sísmico. Mais uma vez a desonestidade institucionalizada, provoca uma catástrofe destas e, naturalmente, passará impune.
São estes e outros pormenores, pormenores não, assuntos de muita importância neste caso, que me vão tornando cada vez mais céptica, mais dura.
Um beijo grande e, mais uma vez, obrigada.
O mais curioso, Maria Celeste, se não o mais indecente, é que alguns prédios que ruíram tinham o carimbo de "construção segundo as normas anti-sísmicas"!
Total ausência de fiscalização e controlos.
Em 1975, decidiram alargar a cidade, construindo o bairro Pettino – e prosseguindo nas construções até agora - sobre uma “falha sísmica”: «uma fractura na terra longa 10 quilómetros; uma falha que se move, que se desvia, que se abre, que se fecha» (assim a descreveram os autores da excelente reportagem, no jornal La Repubblica).
O ponto pior de L’Aquila!! Mas não houve hesitações, da parte da administração local, a declará-lo “área edificável”
Quase todas as casas de Pettino estão danificadas e a maior parte dos seus 25 mil habitantes tiveram de as abandonar. Desalojados fruto da rapacidade de quem desprezou os pareceres contrários dos técnicos que conheciam o terreno.
A minha grande pena, compaixão e simpatia por toda aquela gente cresce continuamente, recordando a precariedade das suas actuais condições de vida! Deve ser tremendo, não acha?
Não quero falar da destruição de tantas famílias, porque isso é já entrar na tragédia máxima.
Um grande abraço
Como Luso-Italiana a Alda ainda mais deve sentir o que se passou nessa zona de Itália. As minhas condolências às famílias das vítimas, que eu pouco mais posso fazer que isso.
De facto fica-se com uma sensação de grande indignação quando se sabe que os edifícios dessa zona Italiana forma edificadas numa área de comprovada actividade sísmica, sem que se cumprissem todas as regras que já estão implantadas nos livros e projectos para esse efeito.
Quanto ao snr. Berlusconi, o que me chegou aos ouvidos foi que apelou às vítimas que se tentassem animar com aquela história dum fim-de-semana de acampamento para esquecer o sucedido. Fiquei pouco convencido que tivesse sido mesmo desta maneira que Berlusconi se terá dirigido às pessoas, mas...vindo de quem vem!
De qualquer modo, por aquilo que a Alda refere que foi o seu comportamento (como era a sua obrigação, aliás) ter-se-á redimido desse lapso (só pode ter sido...).
Um abraço, amiga Alda, que a sua segunda pátria consiga recompor-se rapidamente.
António
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