QUO VADIS, BENTO XVI?
Talvez seja mais acertado interrogarmo-nos até onde Bento XVI pretende fazer recuar a Igreja Católica: aos tempos singelos de uma espiritualidade que fala às consciências ou aos séculos do poder temporal dos papas?
A investidura de autoridade moral, ética e religiosa dos homens do Vaticano, que se crêem os únicos detentores dessa autoridade, desaparelhou-lhes o bom senso e o equilíbrio, levando-os a uma intromissão pesada e grosseira nas decisões de um Estado laico e soberano.
O que se está a passar na Itália, acerca do caso Eluana Englaro, em estado vegetativo há 17 anos, ultrapassa toda a nossa compreensão, embora nos esforcemos por considerar os vários pontos de vista, os diferentes graus de sensibilidade, as concepções que situações dolorosas como esta possam sugerir.
À volta desta pobre senhora desencadeou-se uma rumorosa série de tomadas de posição, não somente esquálidas, mas incivilizadas e inexplicáveis.
É uma questão delicadíssima que deveria ser tratada com piedade e respeito.
Talvez seja mais acertado interrogarmo-nos até onde Bento XVI pretende fazer recuar a Igreja Católica: aos tempos singelos de uma espiritualidade que fala às consciências ou aos séculos do poder temporal dos papas?
A investidura de autoridade moral, ética e religiosa dos homens do Vaticano, que se crêem os únicos detentores dessa autoridade, desaparelhou-lhes o bom senso e o equilíbrio, levando-os a uma intromissão pesada e grosseira nas decisões de um Estado laico e soberano.
O que se está a passar na Itália, acerca do caso Eluana Englaro, em estado vegetativo há 17 anos, ultrapassa toda a nossa compreensão, embora nos esforcemos por considerar os vários pontos de vista, os diferentes graus de sensibilidade, as concepções que situações dolorosas como esta possam sugerir.
À volta desta pobre senhora desencadeou-se uma rumorosa série de tomadas de posição, não somente esquálidas, mas incivilizadas e inexplicáveis.
É uma questão delicadíssima que deveria ser tratada com piedade e respeito.
Todas as dúvidas, a este propósito, são válidas. Já o não são, quando se apresentam como verdades indiscutíveis.
As hierarquias católicas, em vez de manifestar e defender, persuasiva e pacatamente, os princípios que a orientam, lançaram uma campanha rude, autoritária, peremptória. A pressão sobre o governo caracterizou-se por uma impudência fora do tolerável. Este deveria agir, isto é, anular as várias sentenças – de primeira instância, da Relação e do Supremo Tribunal de Justiça – e apenas obedecer às leis de Deus: leis ditadas pelo Vaticano, obviamente.
O respeito pelos poderes de um Estado laico é um valor que o novo integrismo do Vaticano não concebe.
Não houve cardeal que não lançasse os seus anátemas contra "a eutanásia, um crime, um homicídio de Estado por fome e sede", criticando tudo e todos os que não acatassem as interpretações da Igreja.
Gostaria que me explicassem, e que a minha inteligência pudesse aceitar, o que significa manter em vida, a todo o custo, um corpo sem reacções, uma existência vegetativa de há 17 anos, mediante uma alimentação forçada, mediante recursos técnicos.
Como poderemos interpretar, então, o decurso natural da morte?
Todos nós defendemos a vida; mas não a podemos impor, sobretudo em casos dramáticos como o de Eluana Englaro.
Ninguém tem o direito de apresentar diktats: nem a política nem quem se arroga a primazia de impor certezas.
Penso que só a família e os médicos bem conscientes da sua missão devam intervir.
Os pais de Eluana recorreram a tudo o que estava ao alcance da ciência médica para a recuperação da filha. Quando lhes deram a certeza do seu estado irreversível, lutaram com civismo e coragem, a fim de que a filha tivesse uma morte digna, dentro da legalidade.
Usa-se e abusa-se do termo "eutanásia": situações destas devem ser definidas, classificadas como eutanásia?!
Recuso-me a entendê-la desse modo e respondo com as palavras de um filósofo católico.
“Eu não deixo aberta nenhuma frincha à eutanásia. Não digo: faz-me morrer. Mas digo: deixa-me morrer como estabeleceu a natureza. Nem eu nem tu: a natureza” – Giovanni Reale.
Quando me refiro aos "homens do Vaticano", aludo sempre às altas hierarquias que se movem dentro dos corredores alcatifados do Estado do Vaticano.
Gostaria que me fossem permitidas algumas sugestões a Bento XVI.
Pedir-lhe-ia que, de vez em quando, trocasse os trajos de Sumo Pontífice por o de um qualquer sacerdote que vive em contacto com o povo. Que caminhasse, mas usando sapatos de montanha, pois os trilhos que a humanidade percorre são íngremes e acidentados. Que se misturasse, anonimamente, com essa mesma humanidade e vivesse, lado a lado, as suas dores e problemas.
Tenho a certeza que essa fé cerebral de hoje, ancorada em princípios teológicos académicos, transformar-se-ia naqueles sentimentos religiosos que brotam do coração, à imagem e semelhança da fé de João Paulo II: fé robusta e inquebrantável, por vezes conservadora, mas fé límpida, sincera e contagiosa que irresistivelmente atraía o afecto e admiração de todos nós.
****
Falemos agora do cínico aproveitamento político deste sórdido alarido.
De princípio, o primeiro-ministro, Berlusconi, não se manifestou. Porém, as ingerências e pressões do Vaticano eram incessantes.
Por cálculos políticos, a maioria não deve descontentar as hierarquias católicas. Têm sido uma boa aliada.
Assim, o Conselho de Ministros (sob imposição de Berlusconi, pois nem todos estavam de acordo) decidiu aprovar um decreto-lei que ia completamente ao arrepio da sentença do Supremo Tribunal de Justiça, a qual autorizava, dentro de um determinado protocolo, a suspensão da nutrição artificial a Eluana Englaro.
O decreto-lei proíbe essa suspensão - aliás, gestores da coisa pública, aliados do Governo e atentos aos ditames do Vaticano, tentaram e tentam, por todos os meios, impedir a execução da sentença.
Um estrondoso choque, sem precedentes, de poderes institucionais!
O Presidente da República enviara-lhe uma carta privada, explicando-lhe que não poderia assinar um decreto-lei desse género, pois seria anticonstitucional.
Ignorou-a, chegando a insinuar que a morte de Eluana seria responsabilidade do Presidente da República e que este defendia a eutanásia
As hierarquias católicas, em vez de manifestar e defender, persuasiva e pacatamente, os princípios que a orientam, lançaram uma campanha rude, autoritária, peremptória. A pressão sobre o governo caracterizou-se por uma impudência fora do tolerável. Este deveria agir, isto é, anular as várias sentenças – de primeira instância, da Relação e do Supremo Tribunal de Justiça – e apenas obedecer às leis de Deus: leis ditadas pelo Vaticano, obviamente.
O respeito pelos poderes de um Estado laico é um valor que o novo integrismo do Vaticano não concebe.
Não houve cardeal que não lançasse os seus anátemas contra "a eutanásia, um crime, um homicídio de Estado por fome e sede", criticando tudo e todos os que não acatassem as interpretações da Igreja.
Gostaria que me explicassem, e que a minha inteligência pudesse aceitar, o que significa manter em vida, a todo o custo, um corpo sem reacções, uma existência vegetativa de há 17 anos, mediante uma alimentação forçada, mediante recursos técnicos.
Como poderemos interpretar, então, o decurso natural da morte?
Todos nós defendemos a vida; mas não a podemos impor, sobretudo em casos dramáticos como o de Eluana Englaro.
Ninguém tem o direito de apresentar diktats: nem a política nem quem se arroga a primazia de impor certezas.
Penso que só a família e os médicos bem conscientes da sua missão devam intervir.
Os pais de Eluana recorreram a tudo o que estava ao alcance da ciência médica para a recuperação da filha. Quando lhes deram a certeza do seu estado irreversível, lutaram com civismo e coragem, a fim de que a filha tivesse uma morte digna, dentro da legalidade.
Usa-se e abusa-se do termo "eutanásia": situações destas devem ser definidas, classificadas como eutanásia?!
Recuso-me a entendê-la desse modo e respondo com as palavras de um filósofo católico.
“Eu não deixo aberta nenhuma frincha à eutanásia. Não digo: faz-me morrer. Mas digo: deixa-me morrer como estabeleceu a natureza. Nem eu nem tu: a natureza” – Giovanni Reale.
Quando me refiro aos "homens do Vaticano", aludo sempre às altas hierarquias que se movem dentro dos corredores alcatifados do Estado do Vaticano.
Gostaria que me fossem permitidas algumas sugestões a Bento XVI.
Pedir-lhe-ia que, de vez em quando, trocasse os trajos de Sumo Pontífice por o de um qualquer sacerdote que vive em contacto com o povo. Que caminhasse, mas usando sapatos de montanha, pois os trilhos que a humanidade percorre são íngremes e acidentados. Que se misturasse, anonimamente, com essa mesma humanidade e vivesse, lado a lado, as suas dores e problemas.
Tenho a certeza que essa fé cerebral de hoje, ancorada em princípios teológicos académicos, transformar-se-ia naqueles sentimentos religiosos que brotam do coração, à imagem e semelhança da fé de João Paulo II: fé robusta e inquebrantável, por vezes conservadora, mas fé límpida, sincera e contagiosa que irresistivelmente atraía o afecto e admiração de todos nós.
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Falemos agora do cínico aproveitamento político deste sórdido alarido.
De princípio, o primeiro-ministro, Berlusconi, não se manifestou. Porém, as ingerências e pressões do Vaticano eram incessantes.
Por cálculos políticos, a maioria não deve descontentar as hierarquias católicas. Têm sido uma boa aliada.
Assim, o Conselho de Ministros (sob imposição de Berlusconi, pois nem todos estavam de acordo) decidiu aprovar um decreto-lei que ia completamente ao arrepio da sentença do Supremo Tribunal de Justiça, a qual autorizava, dentro de um determinado protocolo, a suspensão da nutrição artificial a Eluana Englaro.
O decreto-lei proíbe essa suspensão - aliás, gestores da coisa pública, aliados do Governo e atentos aos ditames do Vaticano, tentaram e tentam, por todos os meios, impedir a execução da sentença.
Um estrondoso choque, sem precedentes, de poderes institucionais!
O Presidente da República enviara-lhe uma carta privada, explicando-lhe que não poderia assinar um decreto-lei desse género, pois seria anticonstitucional.
Ignorou-a, chegando a insinuar que a morte de Eluana seria responsabilidade do Presidente da República e que este defendia a eutanásia
Se não pudesse governar com decretos-lei, mudar-se-ia a Constituição..
E as bacoradas berlusconianas iam-se encadeando. Por exemplo: “Eluana tem condições de poder gerar um filho”. Nem merece comentários!
E as bacoradas berlusconianas iam-se encadeando. Por exemplo: “Eluana tem condições de poder gerar um filho”. Nem merece comentários!
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Este homúnculo, que vive emproadamente a função de chefe do Governo, sofre de uma egolatria desmesurada.
Não admite os pesos e contrapesos de um estado democrático que lhe limitem o poder, a importância. Logo, não podia “tolerar” que o garante da Constituição, a figura mais representativa do País, lhe impusesse regras.
A separação de poderes é algo que este parvenu da política não quer assimilar. Sonha com a presidência da República; sonha com Mussolini.
Ignora que, para se chegar a ditador - mesmo ditadorzeco de trazer por casa - é necessário possuir umas certas qualidades de tribuno.
Ora, apreciando-lhe o modo de se exprimir e de agir, a ideia que estamos perante um artista de cabaret que ascendeu a primeiro-ministro permanece inalterada.
Infelizmente, porém, os golpes desferidos contra o sistema democrático vão-se multiplicando.
Alda M. Maia
Este homúnculo, que vive emproadamente a função de chefe do Governo, sofre de uma egolatria desmesurada.
Não admite os pesos e contrapesos de um estado democrático que lhe limitem o poder, a importância. Logo, não podia “tolerar” que o garante da Constituição, a figura mais representativa do País, lhe impusesse regras.
A separação de poderes é algo que este parvenu da política não quer assimilar. Sonha com a presidência da República; sonha com Mussolini.
Ignora que, para se chegar a ditador - mesmo ditadorzeco de trazer por casa - é necessário possuir umas certas qualidades de tribuno.
Ora, apreciando-lhe o modo de se exprimir e de agir, a ideia que estamos perante um artista de cabaret que ascendeu a primeiro-ministro permanece inalterada.
Infelizmente, porém, os golpes desferidos contra o sistema democrático vão-se multiplicando.
Alda M. Maia
2 Comments:
Adorei ler este seu texto! Por vontade de Deus Eluana já teria morrido, o que a mantém viva não é a natureza é a ciência, que não é bem uma religião que se apoia em dogmas, esta é a minha tão singela opinião! O Papa não crê em Deus nenhum! Não é assim que a fé nasce no Homem! Sabe lá ele o que é o desespero! Deus lhe perdoe!
Agradável surpresa encontrar o seu comentário. Obrigada pela atenção.
Teria muito mais para escrever, pois o que se está a passar com o caso Eluana ultrapassa todos os limites da decência. Nem piedade nem civismo: uma vergonha.
Um beijinho
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