ESCUTEMOS ESTAS VOZES
Na semana passada,
acontecimentos muito graves, ocorridos em Paris, ecoaram estrondosamente por
todos os continentes. Muito se escreveu sobre aqueles factos e as análises
choveram de todos os quadrantes com os pontos de vista próprios dos diversos
observadores.
Li um grande número
dessas análises e opiniões. Quase todas confluem para uma constatação inegável:
o perigo do fundamentalismo islâmico que se infiltrou na Europa. As suas
origens e as culpas de quem para elas contribuiu, quer do mundo ocidental, quer
do mundo muçulmano.
É sobre o mundo
muçulmano que não enfrenta a modernidade que quero transcrever o modo de pensar
de um chefe de Estado e de um filósofo.
Ambos muçulmanos,
apontam o que deve ser reconsiderado dentro da própria religião, a fim de que o
islão, paralisado nos tempos, evolua e não dê azo ao surgimento de monstros que
o desvirtuam, o que não merece.
No dia 28 de Dezembro
passado, o presidente egípcio Al Sisi
pronunciou um discurso na universidade Al-Azhar no Cairo. Historicamente, esta
universidade é uma grande autoridade no que concerne matérias de doutrina
islâmica. Eis o que, desassombrada e corajosamente, proferiu:
“Dirijo-me
aos estudiosos da religião e às autoridades religiosas. Devemos lançar um olhar
atento e lúcido à situação actual. É inconcebível que a ideologia que nós
santificamos faça da nossa inteira nação (mundo islâmico)
uma fonte de preocupação, perigo, morte e destruição no mundo inteiro. Não me
refiro à «religião», mas sim à «ideologia» - o conjunto de ideias e de textos
que, através dos séculos, santificámos de tal forma que se torna difícil
submetê-los a discussão. Chegamos a um ponto no qual esta ideologia é hostil ao
mundo inteiro. É concebível que 1,6 mil milhões de muçulmanos matem o
resto da população mundial para que possam viver sós? É inconcebível.
Eu
digo estas coisas, aqui em Al-Azhar, perante autoridades religiosas e
estudiosos. Que Alá possa testemunhar, no Dia do Juízo, a sinceridade das
vossas intenções, relativamente ao que vos digo hoje.
Não
podeis ver as coisas com clareza, quando sois prisioneiros desta ideologia.
Deveis abandoná-la e olhar as coisas do lado de fora, a fim de que vos
aproximeis de uma visão iluminada.
Deveis
opor-vos a esta ideologia com determinação. Temos necessidade de revolucionar a nossa religião… Venerável Imã, (Grão-Xeque de Al-Azhar) vós sois responsável perante Alá. O mundo
inteiro espera as vossas palavras, porque a nação islâmica está lacerada,
destruída, aviada para a ruína. Somos nós mesmos que a conduzimos para a ruína.”
(o sublinhado é meu)
*******
Vejamos agora o que
diz o filósofo francês Abdennour Bidar (especializado
na evolução contemporânea do Islão) na sua “Carta Aberta ao mundo Muçulmano”.
É um texto extenso,
publicado no jornal online Huffington
Post (versão em italiano) no dia 10 deste mês. Traduzirei alguns extractos,
mas é difícil seleccionar, pois todo o conteúdo é interessantíssimo.
“Caro mundo
muçulmano, sou um entre os teus filhos afastados que te olha da fora e de
longe, desta França onde tantos dos teus filhos vivem hoje. Vejo-te com olhos
severos, olhos de um filósofo com o taçawwuf (sufismo) e o pensamento
ocidental… Vejo-te numa condição de miséria e sofrimento que me torna
tremendamente triste, mas que torna ainda mais duro o meu juízo de filósofo!
Isto porque vejo que estás a dar ao mundo um monstro que escolheu ser chamado
Estado Islâmico, mas ao qual alguém prefere dar o nome de demónio: DAESH.
A coisa pior é que te
vejo a perder o teu tempo e a tua honra, recusando reconhecer que isto fizeste-o tu, é fruto das
tuas erraticidades, das tuas contradições, da tua interminável separação entre
passado e presente, da tua duradoura incapacidade de encontrar um lugar na
civilização humana.
(…) Negas que os
crimes cometidos por este monstro sejam praticados em teu nome. (NotInMyName).
Indignas-te diante de uma tal monstruosidade. Insurges-te quando o monstro
usurpa a tua identidade, e tens razão. É indispensável que, perante o mundo,
proclames em voz alta que o Islão denuncia as barbáries. Porém, é absolutamente
insuficiente! Porque tu refugias-te no reflexo da autodefesa sem assumir-te, acima
de tudo, a responsabilidade da autocrítica.
(…) Donde provêm os
crimes deste chamado «Estado islâmico»? Explicar-to-ei, meu amigo, e isto não te
agradará, mas é meu dever de filósofo.
As raízes deste mal
que hoje te rouba a face residem em ti. O monstro saiu do teu ventre, o cancro está
no teu corpo. E deste modo, tantos novos monstros, piores do que estes, sairão
ainda do teu ventre doente enquanto te recusarás a olhar de frente esta
realidade e empregarás tempo a admitir e atacar, finalmente, esta raiz do mal!
(…) A natureza
espiritual do homem tem medo do vazio. Se não encontra nada de novo para
preenchê-lo, fá-lo-á amanhã com religiões sempre inadaptadas ao presente e
meter-se-ão, portanto, a produzir monstros, como faz o Islão actualmente.
(…) Onde estão os
teus grandes pensadores, os teus intelectuais cujos livros deveriam ser lidos
no mundo inteiro como no tempo em que os
matemáticos e filósofos árabes e persas eram uma referência da Índia à Espanha?
(…) Penso que chegou
o momento, na civilização do Islão, de instituir esta liberdade espiritual, a
mais sublime e difícil de todas, em vez de todas as leis inventadas por
gerações de teólogos.
Hoje, na Umma (comunidade muçulmana), ouvem-se
numerosas vozes que tu não queres ouvir, que se insurgem contra este escândalo,
que denunciam este tabu de uma religião autoritária e indiscutível da qual se
servem os chefes para difundir o seu domínio até ao infinito… De tal modo que
muitos crentes interiorizaram uma cultura da submissão à tradição e aos mestres
da religião (imãs, muftis, shouyoukhs, etc.)
(…) É necessário
proceder de modo que tu, meu amigo, não te iludas, crendo e fazendo crer que
quando se acabará com o terrorismo islâmico, o Islão terá resolvido os seus
problemas! Porque tudo o que evoquei, isto é, uma religião tirânica, dogmática,
literária, formalista, machista, conservadora, regressista é, muitas vezes -
não sempre, mas muitas vezes – o Islão ordinário, o Islão quotidiano que sofre
e faz sofrer demasiadas consciências, o Islão da tradição e do passado, o Islão deformado por todos os que o
utilizam politicamente, o Islão que ainda consegue fazer calar as Primaveras
árabes e a voz de todos os jovens que pedem algo de diferente. Então, quando farás a tua verdadeira
revolução?
(…) Em Terra islâmica,
e em qualquer parte nas comunidades muçulmanas do mundo, há consciências fortes
e livres, mas estão condenadas a viver a sua liberdade sem certeza, sem
reconhecimento de um direito verdadeiro, deixadas, a seu risco e perigo, perante
o controlo comunitário ou mesmo ante a polícia religiosa.
(…) Em muitos dos
teus países tu ainda associas religião e violência contra as mulheres, contra
os «maus crentes», contra as minorias cristãs e outras, contra os pensadores e
os espíritos livres, contra os rebeldes, mas de tal maneira de se chegar a
confundir esta religião e esta violência, entre os mais desequilibrados e os
mais frágeis dos teus filhos, na monstruosidade da jihad.”
(… ) Caro mundo
muçulmano… Sou apenas um filósofo e, como sempre, alguns dirão que o filósofo é
um herético. Portanto, eu procuro somente fazer resplandecer de novo a luz. É o
nome que me deste que mo ordena: Abdennour, «Serviteur de la Lumière»
3 Comments:
É pena estas vozes não se estarem a revelar suficientes para converter tantos infiéis fanáticos que assombram todo o mundo, incluindo o próprio mundo muçulmano.
Viva, Alda, espero que esteja tudo bem com a minha amiga. Virei-me, por comodismo e algum cansaço, mais para o Facebook. Mas estes seus escritos são sempre de muito interesse e muito bem estruturados. Faz pena não serem mais comentados.
Assim vai este mundo...
Votos sinceros de um Bom Ano de 2015.
António e Zaida (O meu Facebook é também utilizado pela Zaida, mas só para consulta, que ela não perde tempo a escrever lá. ...)
FB https://www.facebook.com/orelhavoadora
Mas continuo com os meus blogues, que continuo a usar como o meu Auxiliar de Memória e meio de partilha de informação.
Olá, António!
Não sei se lerá este meu comentário que responde à sua mensagem muito simpática, como sempre.
Obrigada pela sua opinião.
Quanto ao Facebook, ainda não consegui afeiçoar-me ou acostumar-me àquele modo de comunicação e amizade. Pode ser que o consiga.
Um abraço a toda a Família e um beijinho à Zaida
Alda
Aqui estou. É só para dizer, agora, que acabei por ler este seu comentário.
A questão do facebook tem muito a ver com o comodismo e tertúlia de café a que nos estamos a habituar. Por comodismo, penso eu.
A verdade é que tenho saudades do tempo em que ia para o meu blogue e escrevia sem estar com a preocupação de ser conciso... até de mais.
Abço
António
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