segunda-feira, março 24, 2014

AUSTERIDADE,
CRIME CONTRA A HUMANIDADE?

Por mim, visto o que vai sucedendo de negativo em Portugal e noutros países com economias mais robustas, não tenho dúvidas. Todavia, em vez de asserir que a austeridade é um crime contra a humanidade, fixar-me-ia na fria indiferença sobre as consequências desumanas que a mesma desencadeou. Tal indiferença é mais indigesta.

Traduzo, quase na íntegra, um artigo muito revelador de Luciano Gallino (sociólogo, escritor, docente de sociologia, além de outros títulos e encargos prestigiosos). Apenas omiti o parágrafo que descreve os males que flagelam a sociedade grega.

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“O CRIME DA AUSTERIDADE E
A IMPUNIDADE DOS VÉRTICES DA UE”

“Nos fins de 2012 um grupo de jornalistas políticos apresentava no Tribunal Penal Internacional de Haia uma denúncia por suspeitos crimes contra a humanidade a cargo do presidente da Comissão Europeia (Barroso), da directora do FMI (Lagarde), do presidente do Conselho Europeu (Van Rampuy), assim como a Chanceler Angela Merkel e do seu ministro das Finanças, Schäuble.

Por sua vez, Sara Luzia Hassel, uma activista alemã no campo dos direitos humanos, apoiava a denúncia com um relatório documentadíssimo sobre as acções efectuadas pelas instituições citadas, quer em prejuízo da Grécia, quer de outros países europeus, e não só.”
Acções susceptíveis de serem absolutamente configuradas como crimes contra a humanidade, nos termos do artigo 7 do Estatuto de Roma do Tribunal Penal de Haia.
Parte-se da liquidação da saúde pública até às políticas agrícolas que esfomearam milhões de pessoas; da salvaguarda do sistema financeiro danoso para os cidadãos comuns às restritas elites que influenciam as decisões dessas entidades; das intervenções, no âmbito do trabalho e da previdência, aptas a lesar direitos humanos basilares.

Ainda um outro documento acusa os vértices da UE de graves formas de ilegalidade, semelhantes às que se acabou de indicar mas sem etiquetá-las como crimes contra a humanidade, foi publicado, em finais de 2013, pelo Centro de Estudos de Políticas do Direito Europeu de Bremen a pedido da “Câmara do Trabalho” de Viena.
Por quanto é dado saber, os documentos citados, até hoje, jazem nas gavetas dos destinatários.

Recentemente, porém, intervieram factos novos que poderiam induzir qualquer ONG ou formações políticas a relançar as denúncias aqui descritas.
Sirva de exemplo o relatório que saiu no fim de Fevereiro em Lancet, número um das revistas médicas, sobre os danos que a crise da saúde na Grécia está a infligir à população, por causa das medidas de austeridade impostas pelas instituições da UE (…)

Um segundo facto novo é que a Itália - juntamente com a Espanha, Portugal e Irlanda - parece aviada para a mesma estrada da Grécia. Também no nosso país, os tempos de espera para as visitas de especialistas, frequentemente alongam-se de muitos meses, porque os médicos que se reformam não são substituídos. Muitas pessoas adiam ou renunciam a visitas médicas ou exames clínicos, porque as taxas moderadoras foram alvo de grandes aumentos e não conseguem pagá-las.

Portanto, toda a questão pode ser resumida deste modo: as políticas de austeridade, os ajustamentos estruturais, as privatizações impostas aos Estados-membros pelos vértices da UE, isto é, a chamada Troika (BCE, FMI, Comissão Europeia) estão a infligir privações insustentáveis a milhões de cidadãos. Como se lê no relatório Lancet, “se as políticas adoptadas tivessem efectivamente melhorado a economia, então as consequências para a saúde poderiam ser um preço que vale a pena pagar. Pelo contrário, os cortes profundos tiveram, na realidade, efeitos económicos negativos, facto  reconhecido pelo FMI.”

Na Itália - não menos que na Grécia, Espanha, Portugal - o desemprego e a precariedade atingiram níveis altíssimos. O PIB perdeu para além de 10 pontos em relação a 2007. A combinação de indicadores fatais, qual a deflação, ou seja, uma grande queda do nível dos preços em muitos sectores, a procura agregada estagnante, mais um crescimento do PIB que nos próximos anos continuará a registar taxas de 1% ou menos, está a conduzir as respectivas economias para o desastre.

Por outras palavras, os vértices da UE, com as políticas económicas e sociais que impuseram, deram provas de uma escandalosa indiferença pelas pessoas a elas submetidas; aliás, acrescente-se que as ditas políticas se demonstraram clamorosamente erradas.

A questão apresenta alguns pontos de contacto com a crise financeira que explodiu em 2008. Nessa altura, diversos juristas americanos e europeus falaram de “crimes económicos contra a humanidade” cometidos por dirigentes dos maiores grupos financeiros. Porém, o caso hodierno da UE apresenta diferenças abissais. No caso da crise financeira, os actores eram sujeitos privados. No caso da crise europeia, trata-se dos máximos expoentes da gerência pública da UE a quem foi confiado o oneroso empenho de presidir aos destinos de 450 milhões de pessoas nos tempos da crise.

No desenvolvimento desse empenho, mostraram, acima de tudo, uma irrefutável incompetência na gestão da crise. Optaram por favorecer os interesses dos grandes grupos financeiros, indo contra os interesses vitais das populações da União Europeia; prestaram grande atenção às maiores elites europeias e, em mais de um caso, fazendo parte delas; provaram não ter a mínima consideração pela sorte das pessoas a quem eram destinadas as suas políticas. Como se admite que não sejam chamados a responder de nenhuma forma pelas ilegalidades, não menos que pelos erros que cometeram e pelo sofrimento que causaram com a indiferença, digamos mesmo com o absoluto desprezo demonstrado em relação às populações atingidas?  

Segundo o documento de Bremen, as violações dos direitos humanos efectuadas pelos vértices da UE, desprezando os próprios tratados da União, poderiam ser levados perante vários tribunais institucionais europeus, assim como perante organizações internacionais, como a ONU e a Organização Internacional do Trabalho.

Convém recordar que de crimes e ilegalidades da UE falam, em modo expedito, os partidos nacionalistas, mas com uma diferença radical em relação às iniciativas acima citadas. Através de tais acusações, esses partidos querem destruir a União Europeia, ao passo que a finalidade deveria ser a expulsão dos actuais dirigentes da Troika e substituí-los com outros, após ter procedido a uma profunda revisão dos tratados europeus. Mediante essa revisão, seja reforçado, desde o início, que no seu próprio interesse constitutivo, como escrevem os juristas de Bremen, as instituições europeias devem considerar, seriamente, as questões sociais existenciais das cidadãs e dos cidadãos da União.
Não existe um estado de excepção que possa isentá-las de tal dever, exactamente ao contrário do que estão a fazer com as políticas de austeridade.”
Luciano Gallino; La Repubblica – 15 de Março 2014