AUSTERIDADE,
CRIME CONTRA A HUMANIDADE?
Por mim, visto o que vai sucedendo de negativo em
Portugal e noutros países com economias mais robustas, não tenho dúvidas. Todavia,
em vez de asserir que a austeridade é um crime contra a humanidade, fixar-me-ia
na fria indiferença sobre as consequências desumanas que a mesma desencadeou.
Tal indiferença é mais indigesta.
Traduzo, quase na íntegra, um artigo muito revelador de
Luciano Gallino (sociólogo,
escritor, docente de sociologia, além de outros títulos e encargos prestigiosos).
Apenas omiti o parágrafo que descreve os males que flagelam a sociedade grega.
*****
“O CRIME DA
AUSTERIDADE E
A IMPUNIDADE DOS
VÉRTICES DA UE”
“Nos fins de 2012 um grupo de jornalistas políticos
apresentava no Tribunal Penal Internacional de Haia uma denúncia por suspeitos crimes
contra a humanidade a cargo do presidente da Comissão Europeia (Barroso), da
directora do FMI (Lagarde), do presidente do Conselho Europeu (Van Rampuy),
assim como a Chanceler Angela Merkel e do seu ministro das Finanças, Schäuble.
Por sua vez, Sara Luzia Hassel, uma activista alemã no
campo dos direitos humanos, apoiava a denúncia com um relatório
documentadíssimo sobre as acções efectuadas pelas instituições citadas, quer em
prejuízo da Grécia, quer de outros países europeus, e não só.”
Acções susceptíveis de serem absolutamente configuradas
como crimes contra a humanidade, nos termos do artigo 7 do Estatuto de Roma do
Tribunal Penal de Haia.
Parte-se da liquidação da saúde pública até às
políticas agrícolas que esfomearam milhões de pessoas; da salvaguarda do
sistema financeiro danoso para os cidadãos comuns às restritas elites que
influenciam as decisões dessas entidades; das intervenções, no âmbito do
trabalho e da previdência, aptas a lesar direitos humanos basilares.
Ainda um outro documento acusa os vértices da UE de
graves formas de ilegalidade, semelhantes às que se acabou de indicar mas sem etiquetá-las
como crimes contra a humanidade, foi publicado, em finais de 2013, pelo Centro
de Estudos de Políticas do Direito Europeu de Bremen a pedido da “Câmara do
Trabalho” de Viena.
Por quanto é dado saber, os documentos citados, até
hoje, jazem nas gavetas dos destinatários.
Recentemente, porém, intervieram factos novos que
poderiam induzir qualquer ONG ou formações políticas a relançar as denúncias aqui
descritas.
Sirva de exemplo o relatório que saiu no fim de
Fevereiro em Lancet, número um das
revistas médicas, sobre os danos que a crise da saúde na Grécia está a infligir
à população, por causa das medidas de austeridade impostas pelas instituições
da UE (…)
Um segundo facto novo é que a Itália - juntamente com a
Espanha, Portugal e Irlanda - parece aviada para a mesma estrada da Grécia.
Também no nosso país, os tempos de espera para as visitas de especialistas,
frequentemente alongam-se de muitos meses, porque os médicos que se reformam
não são substituídos. Muitas pessoas adiam ou renunciam a visitas médicas ou
exames clínicos, porque as taxas moderadoras foram alvo de grandes aumentos e
não conseguem pagá-las.
Portanto, toda a questão pode ser resumida deste modo:
as políticas de austeridade, os ajustamentos estruturais, as privatizações
impostas aos Estados-membros pelos vértices da UE, isto é, a chamada Troika
(BCE, FMI, Comissão Europeia) estão a infligir privações insustentáveis a
milhões de cidadãos. Como se lê no relatório Lancet, “se as políticas adoptadas tivessem efectivamente melhorado
a economia, então as consequências para a saúde poderiam ser um preço que vale
a pena pagar. Pelo contrário, os cortes profundos tiveram, na realidade,
efeitos económicos negativos, facto reconhecido pelo FMI.”
Na Itália - não menos que na Grécia, Espanha, Portugal
- o desemprego e a precariedade atingiram níveis altíssimos. O PIB perdeu para
além de 10 pontos em relação a 2007. A combinação de indicadores fatais, qual a
deflação, ou seja, uma grande queda do nível dos preços em muitos sectores, a
procura agregada estagnante, mais um crescimento do PIB que nos próximos anos
continuará a registar taxas de 1% ou menos, está a conduzir as respectivas
economias para o desastre.
Por outras palavras, os vértices da UE, com
as políticas económicas e sociais que impuseram, deram provas de uma
escandalosa indiferença pelas pessoas a elas submetidas; aliás, acrescente-se que as ditas políticas se demonstraram clamorosamente erradas.
A questão apresenta alguns pontos de contacto com a
crise financeira que explodiu em 2008. Nessa altura, diversos juristas
americanos e europeus falaram de “crimes económicos contra a humanidade”
cometidos por dirigentes dos maiores grupos financeiros. Porém, o caso hodierno
da UE apresenta diferenças abissais. No caso da crise financeira, os actores
eram sujeitos privados. No caso da crise europeia, trata-se dos máximos
expoentes da gerência pública da UE a quem foi confiado o oneroso empenho de
presidir aos destinos de 450 milhões de pessoas nos tempos da crise.
No desenvolvimento desse empenho, mostraram, acima de
tudo, uma irrefutável incompetência na gestão da crise. Optaram por favorecer
os interesses dos grandes grupos financeiros, indo contra os interesses vitais
das populações da União Europeia; prestaram grande atenção às maiores elites
europeias e, em mais de um caso, fazendo parte delas; provaram não ter a mínima
consideração pela sorte das pessoas a quem eram destinadas as suas políticas.
Como se admite que não sejam chamados a responder de nenhuma forma pelas
ilegalidades, não menos que pelos erros que cometeram e pelo sofrimento que
causaram com a indiferença, digamos mesmo com o absoluto desprezo demonstrado
em relação às populações atingidas?
Segundo o documento de Bremen, as violações dos
direitos humanos efectuadas pelos vértices da UE, desprezando os próprios
tratados da União, poderiam ser levados perante vários tribunais institucionais
europeus, assim como perante organizações internacionais, como a ONU e a
Organização Internacional do Trabalho.
Convém recordar que de crimes e ilegalidades da UE
falam, em modo expedito, os partidos nacionalistas, mas com uma diferença
radical em relação às iniciativas acima citadas. Através de tais acusações,
esses partidos querem destruir a União Europeia, ao passo que a finalidade
deveria ser a expulsão dos actuais dirigentes da Troika e substituí-los com
outros, após ter procedido a uma profunda revisão dos tratados europeus. Mediante
essa revisão, seja reforçado, desde o início, que no seu próprio interesse constitutivo,
como escrevem os juristas de Bremen, as instituições europeias devem
considerar, seriamente, as questões sociais existenciais das cidadãs e dos
cidadãos da União.
Não existe um estado de excepção que possa isentá-las
de tal dever, exactamente ao contrário do que estão a fazer com as políticas de
austeridade.”
Luciano Gallino; La Repubblica – 15 de Março 2014
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