segunda-feira, janeiro 28, 2013

DAR O NOME ÀS COISAS

Tinha pensado escrever sobre as recentes declarações do mui desacreditado ministro Relvas acerca da privatização da RTP – pior ainda, se anuncia uma reestruturação. Porém, como a minha indignação ascende a um grau elevado, quando leio de privatizações da RTP, CTT e águas de Portugal, e o que entendo como verdadeiro nome das coisas desviar-se-ia da versão do Governo, suspendo os meus juízos. Temo que esta indignação, por agora, prejudique a objectividade. Deixemos para mais tarde.

Consequentemente, por hoje desvio a minha atenção para o que se está a passar no Egipto, a dois anos da revolta de Tahir, e no que se tornou a esperançosa “primavera árabe” ou o seu equívoco.

Tahar Bem Jelloun, o conceituado escritor marroquino, residente em Paris, escreveu um excelente artigo, onde faz uma análise completa, objectiva e com os nomes das coisas bem explícitos e sem ambages.
Transcrevo-o na íntegra. Vale a pena ser lido com atenção e interesse.

******  
 
AS SOMBRAS SOBRE A PRIMAVERA ÁRABE
A “primavera árabe” nunca deixa de nos surpreender. De alguns meses a esta parte, o que está a acontecer no Norte de Mali e no Sul argelino é a consequência de uma série de eventos ocorridos há mais de vinte anos na Argélia e, mais recentemente, na Líbia.
A batalha de Bengasi (Março 2011) e o sucessivo linchamento de Khadafi (20 de Outubro 2011) puseram em debandada milhares de soldados líbios, além de numerosos mercenários e alguns tuaregues sem meta.
Fugindo em direcção do Sahel, levaram ingentes quantidades de armamento, provenientes dos vários depósitos. E no deserto, agregaram-se a outros aventureiros, como os argelinos do GIA (Grupo Islâmico Armada) que tinham tomado parte na guerra civil entre 1991 e 2001; os mauritanos e os magrebinos já passados pelo Afeganistão, além de outros degoladores sem fé nem lei, oriundos de vários países da região e até mesmo da Europa.

Assim, o norte do Mali tornou-se no ponto de encontro de bandidos e assassinos prontos a combater qualquer batalha, às ordens de chefes ocultos, homens velados e misteriosos, detentores de enormes patrimónios e que usam o Islão como insígnia para os seus crimes.

Al Qaeda, o principal sujeito de referência, tem seguido com simpatia os fundadores de AQMI (Al Qaeda do Magreb Islâmico) e vê com bons olhos o projecto de um Magrebe governado por um islamismo radical, isto é, os salafistas. Mas o que conta, acima de tudo, é o dinheiro. Para encontrá-lo, os principais métodos são dois: o narcotráfico e o sequestro de reféns. Uma outra fonte, embora menos suculenta, é o tráfico de migrantes clandestinos de proveniência africana.
Hoje, os objectivos criminosos são muito mais evidentes que os projectos ideológicos e políticos. Conduzidos por personagens carismáticos como Iyad Ag Ghal, líder histórico da revolta dos tuaregues e chefe do partido Asar Dine; como Mokhtar Ben Mokhtar, chamado o “zarolho”, chefe de um movimento denominado “Aqueles que assinam com o sangue”, salafista, mas sobretudo, grande traficante (considerado o cérebro do sequestro do complexo de extracção de gás de In Amenas, no Este argelino); ou ainda, como o mauritano Hamad Ould Khairou que agora reside na cidade de Gao, estes terroristas, armados até aos dentes e bem treinados, ocupam um território imenso sobre o qual flutua uma bandeira negra com a escrita: Alá é o único Deus e Maomé, o seu mensageiro.
Estes grupúsculos, todavia, não são unidos. Cada um toma as iniciativas que mais favorecem os próprios interesses.
A intervenção francesa no Mali (que, segundo alguns, teria como objectivo inconfessado proteger as minas de urânio na fronteira com o Níger) foi aplaudida pela inteira classe política francesa e também pela população do Mali, ameaçada pelo avanço dos gangsters que, no Norte do país, têm demonstrado de quanto são capazes.
Desta vez, o Islão não entra na questão: sobre isto estão todos de acordo.

Os “jihadistas” que aplicam certos preceitos da “sharia” no modo mais bárbaro, decepando mãos e pés e lapidando as mulheres, não são militantes de uma causa nobre, mas acima de tudo são narcotraficantes. E quando executam sequestros, fazem-no para extorquir elevadas somas de dinheiro.
Todavia, para além destes factos reais, muitas perguntas ficam em suspenso: quem financia estes criminosos? De quem recebem todas aquelas armas? Quem se esconde atrás desta barbárie que se expande em formas cada vez mais internacionais?
É necessário que se saiba quais Estados sustentam estes “jihadistas” sem escrúpulos, a fim de denunciá-los como promotores do terrorismo e inimigos da paz, porque atrás destes grupos não há só milhares de milhões, mas Estados que sonham um “domínio islâmico do mundo”.

Desde o início deste acontecimento, a Argélia tinha mantido um silêncio prudente, decidida sobretudo a evitar uma intervenção militar. Somente após o empenho de Paris neste sentido, consentiu o espaço aéreo aos militares franceses. Depois, fechou a fronteira a Sul – o que não impediu os terroristas de conseguir, em 16 de Janeiro, uma retaliação contra a ajuda dada aos franceses: o sequestro, não complexo de extracção de gás de Tigantourine, em In Amenas, de 41 reféns de diversas nacionalidades.

Esta represália contra a Argélia, um desafio no seu território, fez precipitar o país numa guerra que nunca desejou.
Mas como se explica que os terroristas tenham podido ocupar, sem entraves, um complexo de produção de gás e sequestrado um tão elevado número de pessoas?
Como é possível que um sítio assim tão importante não fosse vigiado adequadamente? É legítimo perguntar se os terroristas fruíram de alguma cumplicidade local.
Se, na verdade, o Mali tinha todo o interesse numa intervenção da França e de outros países africanos, a fim de recuperar parte do seu território, a Argélia, pelo seu lado, estava decidida a não entrar neste conflito. Com as feridas da guerra civil ainda abertas, tinha resistido à primavera árabe; não tem nenhum interesse em envolver-se numa engrenagem destinada a desestabilizar uma parte da África. Porém, o sequestro no complexo de In Amenas constrangeu Alger a sair do seu silêncio e a agir.

Segundo algumas informações que circulam desde Setembro 2012, os campos de Tindouf onde estavam aparcados os saharawis pertencentes ao Polisário, eram utilizados para o treino de membros de Al Quaeda.
Na altura, os Estados Unidos convidaram os argelinos a aceitar uma solução política do conflito no Sara Ocidental que, desde 1975, os contrapunha a Marrocos. Houve, efectivamente, uma negociação numa localidade perto de Nova Iorque entre marroquinos e os representantes daquele movimento separatista, mas uma solução séria nunca se encontrou.

A Argélia recusou tratar com os sequestradores. Sem avisar ninguém, na tarde de quinta-feira, 17 Janeiro, tropas argelinas irromperam no local para retomar o controlo do complexo ocupado pelos terroristas. Esta linha de firmeza (de tipo russo) conduziu, porém, a um êxito sangrento: os mortos foram numerosos, entre os quais alguns reféns.  

Quem se aproveitou da “primavera árabe” e a explorou para os próprios fins foram, sobretudo, os islamitas de vários tipos que acolheram como um maná o caos suscitado pelos revolucionários na Líbia – uma terra sem Estado – e nos países como a Tunísia e Egipto, onde o Estado existe, mas está nas mãos do islamismo.  
Tudo isto consente a Bashar Al-Assad de prosseguir nos seus massacres com uma total impunidade.
A Rússia e a China, porque excluídas do jogo líbio, hoje recusam abandonar o ditador sírio, fazendo crer que um regime como o de Assad é preferível a uma república islâmica com os salafistas a cortar as mãos aos ladrões.
Na realidade, porém, as coisas são muito menos simples.
 Tahar Ben Jelloun
La Repubblica - 22 / 01 / 2013