“SINTO-ME TRAÍDO POR UMA POLÍTICA SEM HUMANIDADE”
Raramente insisto em assuntos sobre os quais já aqui exprimira a minha opinião. Todavia, nos jornais “Le Monde” e “La Repubblica” de ontem, foi publicada, contemporaneamente, uma carta do escritor marroquino, Tahar Ben Jelloun, cuja leitura achei muito interessante e que, sob um certo aspecto, me tocou como cidadã com dupla nacionalidade.
Sinto sempre, e longe da retórica patrioteira, um grande orgulho da minha portugalidade e um paralelo orgulho de ser uma cidadã italiana. É o caso de dizer, portanto, que nutro profundos sentimentos por estes dois países.
Depois deste exórdio, passo a traduzir o belíssimo artigo ou carta aberta de Tahar Ben Jelloun, servindo-me quer da versão de La Repubblica (Jelloun também escreve para este quotidiano), quer do texto em francês de Le Monde. É leitura que recomendo.
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Senhor Presidente Sarkozy
Tenho a fortuna de usufruir de duas nacionalidades. Sou marroquino e francês, desde 1991. Sinto-me feliz por esta pertença a dois Países, duas culturas, duas línguas; vivo-a como um permanente enriquecimento. Porém, depois das suas declarações de Grenoble sobra a possível revogação da nacionalidade francesa aos responsáveis de crimes graves, sinto, de uma certa maneira, a minha nacionalidade francesa ameaçada ou, pelo menos, fragilizada.
Não é que eu tenha a intenção de dar-me á delinquência ou de perturbar gravemente a ordem pública. Mas, naquelas palavras, vejo um ataque contra as bases fundamentais do País, contra a sua Constituição. Tal facto, Senhor Presidente, não é admissível numa democracia, num Estado de direito como a França que permanece, apesar de tudo, o País dos direitos humanos. Um País que, durante o século passado, acolheu e salvou centenas de milhares de exilados políticos.
Em 2004, como ministro da Administração Interna, o Senhor declarou que «a cada delito deve corresponder uma resposta firme. Mas isso não pode variar segundo o que se é, sobre o bilhete de identidade, francês ou não».
Hoje, já como presidente, o Senhor contradiz a sua posição de quando era ministro. Isso leva-me a reflectir sobre a função que o Senhor Presidente desempenha e a responder, embora tardiamente, ao debate sobre a identidade nacional que um seu ministro entendeu oportuno lançar à cena pública.
A nacionalidade é uma parte da identidade. Pode ser dupla, como no meu caso. Não consigo ver-me privado de uma delas. Sentir-me-ia diminuído.
Por outro lado, nenhuma sociedade é por si mesma racista. É estúpido e injusto dizer que “a França é um país racista”. A França, como tantos outros países, é atravessada por tendências à exclusão e ao racismo. Algumas vezes por razões ideológicas e políticas; outras, por razões de mal-estar social, de pobreza e de medo. Amalgamar a insegurança com a imigração é mais que um erro, é uma culpa.
O papel de um dirigente político é desencorajar, isto é, impedir o desenvolvimento destas tendências. Um chefe de Estado não deve reagir com os seus humores e de modo visceral, pois não é um cidadão comum que pode permitir-se de dizer o que lhe vier à cabeça. Deve pesar as suas palavras e medir as possíveis consequências. A História regista cada uma das suas declarações: boas ou más; justas ou inoportunas.
E o seu quinquénio, Senhor Presidente, ficará certamente assinalado por algumas incontinências da sua linguagem.
Qualquer pessoa pode reagir, quando insultada, mas não um Presidente da República. Não significa que alguém se sinta encorajado a faltar-lhe ao respeito, mas deve colocar-se acima do nível de um cidadão médio.
É um símbolo, detentor de uma função nobre e excepcional. Para a exercer, para consolidar esta ambição, é necessário saber voar alto e não deixar-se enredar pelos factos, ao ponto de esquecer que se é um cidadão de excepção.
Sejam quais forem os valores, de direita ou de esquerda, do partido donde provém o chefe de Estado, visto que foi eleito por sufrágio universal, deve ser o presidente de todos os franceses, implicitamente os de origem estrangeira, mesmo quando a infelicidade lhes fere os destinos ou os predispõe para uma precariedade patogénica.
Ora, as suas declarações recentes, denunciadas por um editorial do New York Times e personalidades autorizadas como Robert Badinter, são os sinais de um deslize que talvez lhe trará, em 2012, um certo número de votos do Front National, mas colocá-lo-á numa situação dificilmente sustentável.
Senhor Presidente, compreendo a sua preocupação no que concerne o problema da segurança. Não encontrará ninguém disposto a defender delinquentes que disparem contra agentes da polícia ou da gendarmaria. Cabe à Justiça “dar uma resposta firme” a estes delitos, cujos autores devem ser julgados independentemente da sua origem, religião ou cor da pele. Se assim não for, cair-se-á no apartheid. A repressão, todavia, não é suficiente. Ocorre chegar à raiz do mal e sanar, de maneira definitiva, a situação dramática das “banlieues”.
É mais fácil suscitar a desconfiança, ou então o ódio pelo estrangeiro, que promover o respeito mútuo. Um chefe de Estado não é um polícia de alto grau. É o supremo magistrado da nação, o garante da justiça e do estado de direito. Nesta qualidade, deve ser irrepreensível no seu comportamento e nas suas palavras. Quando o Senhor Presidente promete a revogação da nacionalidade aos delinquentes de origem estrangeira que atentem contra a vida de um polícia ou gendarme, o Senhor promete o que a Constituição recusa.
Raramente insisto em assuntos sobre os quais já aqui exprimira a minha opinião. Todavia, nos jornais “Le Monde” e “La Repubblica” de ontem, foi publicada, contemporaneamente, uma carta do escritor marroquino, Tahar Ben Jelloun, cuja leitura achei muito interessante e que, sob um certo aspecto, me tocou como cidadã com dupla nacionalidade.
Sinto sempre, e longe da retórica patrioteira, um grande orgulho da minha portugalidade e um paralelo orgulho de ser uma cidadã italiana. É o caso de dizer, portanto, que nutro profundos sentimentos por estes dois países.
Depois deste exórdio, passo a traduzir o belíssimo artigo ou carta aberta de Tahar Ben Jelloun, servindo-me quer da versão de La Repubblica (Jelloun também escreve para este quotidiano), quer do texto em francês de Le Monde. É leitura que recomendo.
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Senhor Presidente Sarkozy
Tenho a fortuna de usufruir de duas nacionalidades. Sou marroquino e francês, desde 1991. Sinto-me feliz por esta pertença a dois Países, duas culturas, duas línguas; vivo-a como um permanente enriquecimento. Porém, depois das suas declarações de Grenoble sobra a possível revogação da nacionalidade francesa aos responsáveis de crimes graves, sinto, de uma certa maneira, a minha nacionalidade francesa ameaçada ou, pelo menos, fragilizada.
Não é que eu tenha a intenção de dar-me á delinquência ou de perturbar gravemente a ordem pública. Mas, naquelas palavras, vejo um ataque contra as bases fundamentais do País, contra a sua Constituição. Tal facto, Senhor Presidente, não é admissível numa democracia, num Estado de direito como a França que permanece, apesar de tudo, o País dos direitos humanos. Um País que, durante o século passado, acolheu e salvou centenas de milhares de exilados políticos.
Em 2004, como ministro da Administração Interna, o Senhor declarou que «a cada delito deve corresponder uma resposta firme. Mas isso não pode variar segundo o que se é, sobre o bilhete de identidade, francês ou não».
Hoje, já como presidente, o Senhor contradiz a sua posição de quando era ministro. Isso leva-me a reflectir sobre a função que o Senhor Presidente desempenha e a responder, embora tardiamente, ao debate sobre a identidade nacional que um seu ministro entendeu oportuno lançar à cena pública.
A nacionalidade é uma parte da identidade. Pode ser dupla, como no meu caso. Não consigo ver-me privado de uma delas. Sentir-me-ia diminuído.
Por outro lado, nenhuma sociedade é por si mesma racista. É estúpido e injusto dizer que “a França é um país racista”. A França, como tantos outros países, é atravessada por tendências à exclusão e ao racismo. Algumas vezes por razões ideológicas e políticas; outras, por razões de mal-estar social, de pobreza e de medo. Amalgamar a insegurança com a imigração é mais que um erro, é uma culpa.
O papel de um dirigente político é desencorajar, isto é, impedir o desenvolvimento destas tendências. Um chefe de Estado não deve reagir com os seus humores e de modo visceral, pois não é um cidadão comum que pode permitir-se de dizer o que lhe vier à cabeça. Deve pesar as suas palavras e medir as possíveis consequências. A História regista cada uma das suas declarações: boas ou más; justas ou inoportunas.
E o seu quinquénio, Senhor Presidente, ficará certamente assinalado por algumas incontinências da sua linguagem.
Qualquer pessoa pode reagir, quando insultada, mas não um Presidente da República. Não significa que alguém se sinta encorajado a faltar-lhe ao respeito, mas deve colocar-se acima do nível de um cidadão médio.
É um símbolo, detentor de uma função nobre e excepcional. Para a exercer, para consolidar esta ambição, é necessário saber voar alto e não deixar-se enredar pelos factos, ao ponto de esquecer que se é um cidadão de excepção.
Sejam quais forem os valores, de direita ou de esquerda, do partido donde provém o chefe de Estado, visto que foi eleito por sufrágio universal, deve ser o presidente de todos os franceses, implicitamente os de origem estrangeira, mesmo quando a infelicidade lhes fere os destinos ou os predispõe para uma precariedade patogénica.
Ora, as suas declarações recentes, denunciadas por um editorial do New York Times e personalidades autorizadas como Robert Badinter, são os sinais de um deslize que talvez lhe trará, em 2012, um certo número de votos do Front National, mas colocá-lo-á numa situação dificilmente sustentável.
Senhor Presidente, compreendo a sua preocupação no que concerne o problema da segurança. Não encontrará ninguém disposto a defender delinquentes que disparem contra agentes da polícia ou da gendarmaria. Cabe à Justiça “dar uma resposta firme” a estes delitos, cujos autores devem ser julgados independentemente da sua origem, religião ou cor da pele. Se assim não for, cair-se-á no apartheid. A repressão, todavia, não é suficiente. Ocorre chegar à raiz do mal e sanar, de maneira definitiva, a situação dramática das “banlieues”.
É mais fácil suscitar a desconfiança, ou então o ódio pelo estrangeiro, que promover o respeito mútuo. Um chefe de Estado não é um polícia de alto grau. É o supremo magistrado da nação, o garante da justiça e do estado de direito. Nesta qualidade, deve ser irrepreensível no seu comportamento e nas suas palavras. Quando o Senhor Presidente promete a revogação da nacionalidade aos delinquentes de origem estrangeira que atentem contra a vida de um polícia ou gendarme, o Senhor promete o que a Constituição recusa.
São palavras ao vento, pois sabe perfeitamente que a aplicação de uma tal lei se fosse votada, criaria mais problemas do que aqueles que entende resolver.
Não lhe compete lançar estas ameaças.
Com certeza não ignora, Senhor Presidente, o conteúdo do último relatório da ONG “Transparence France”. Mas no caso de este texto lhe ter passado despercebido, citarei uma das suas conclusões: “A França continua a veicular uma imagem relativamente degradada da sua classe política e da sua administração pública”.
No entanto, relativamente à corrupção, a França está classificada no 24.º lugar, numa lista de 180 países.
A crise económica não é uma desculpa. A crise moral é um facto. Cabe ao Senhor Presidente a missão de restabelecer a imagem da França no que ela tem de belo, de invejável, de universal: o seu estatuto de país dos direitos do homem; país da solidariedade e da fraternidade proclamadas; uma terra generosa, rica pelas suas diferenças, rica pelas suas cores, das suas espécies e que, além disso, demonstra que o islão é perfeitamente compatível com a democracia e a laicidade.
Portanto, suplico-lhe, Senhor Presidente, anule do seu discurso as ideias infelizes que um partido de extrema-direita difundiu, com o fim de o País encerrar-se em si mesmo, de isolá-lo, de trair os seus valores fundamentais.
Queira acreditar, Senhor Presidente, na expressão dos meus melhores sentimentos.
Tahar Ben Jelloun
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Com certeza não ignora, Senhor Presidente, o conteúdo do último relatório da ONG “Transparence France”. Mas no caso de este texto lhe ter passado despercebido, citarei uma das suas conclusões: “A França continua a veicular uma imagem relativamente degradada da sua classe política e da sua administração pública”.
No entanto, relativamente à corrupção, a França está classificada no 24.º lugar, numa lista de 180 países.
A crise económica não é uma desculpa. A crise moral é um facto. Cabe ao Senhor Presidente a missão de restabelecer a imagem da França no que ela tem de belo, de invejável, de universal: o seu estatuto de país dos direitos do homem; país da solidariedade e da fraternidade proclamadas; uma terra generosa, rica pelas suas diferenças, rica pelas suas cores, das suas espécies e que, além disso, demonstra que o islão é perfeitamente compatível com a democracia e a laicidade.
Portanto, suplico-lhe, Senhor Presidente, anule do seu discurso as ideias infelizes que um partido de extrema-direita difundiu, com o fim de o País encerrar-se em si mesmo, de isolá-lo, de trair os seus valores fundamentais.
Queira acreditar, Senhor Presidente, na expressão dos meus melhores sentimentos.
Tahar Ben Jelloun
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Nota:
O título deste post é o título do jornal "La Repubblica"
Alda M. Maia
Alda M. Maia
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