segunda-feira, agosto 24, 2009

"AQUELES MORTOS QUE GRITAM DO FUNDO DO MAR"
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Lampedusa: imagem comovente que gostaria nunca ter visto ( de La Repubblica)
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"Aqueles mortos que gritam..." Este é o título do editorial que Eugénio Scalfari (fundador do jornal La Repubblica) publicou ontem, domingo, dia 23 de Agosto.

De setenta e oito migrantes de origem eritreia e etíope, apenas se salvaram cinco: um homem, uma mulher e três adolescentes.
Partiram da Líbia nos fins de Julho, num barco de 15 metros e, por falta de carburante, andaram à deriva, sem alimentos nem água, durante 23 dias.

Grande parte do Mediterrâneo è vigiada pela Agência Europeia de Controlo das Fronteiras Externas - Frontex.
Barcos patrulha líbios e italianos colaboram com a finalidade de repelir os barcos de imigrantes clandestinos para o lugar donde partiram: normalmente, centros de acolhimento em território líbio.

(...) Aqueles centros são um inferno, onde os imigrantes provenientes da África saariana e do Corno de África são reuzidos, durante meses, ao estado de escravidão e submetidos às mais infames humilhações, até quando alguns deles são entregues aos mercantes do transporte e embarcados para o seu destino. As vítimas que jazem no fundo daquele tracto do Mediterrâneo já nem se contam. – Eugénio Scalfari

Um grande número de barcos de pesca italianos, tunisinos, egípcios, malteses, etc. operam naquelas águas marítimas.
O desgraçado barco de borracha com tantas pessoas que morriam de fome, sede, queimaduras, não foi avistado, oficialmente, por ninguém!

Durante vinte e três dias, apenas um barco patrulha maltês se aproximou, forneceu-lhes alguns víveres e água, pôs o motor a funcionar e indicou-lhes a direcção da ilha de Lampedusa.
Sacudiu responsabilidades e acomodou-se na já consueta indiferença: a praga que caracteriza a humanidade egoísta e insensível.

Assim, aqueles 78 navegantes, em fuga de zonas de guerra e da miséria, foram morrendo e atirados ao mar. Salvaram-se cinco. Os corpos sem vida dos demais flutuam e vão sendo recolhidos pouco a pouco.

Quando os barcos patrulha italianos e líbios repelem os imigrantes e estes tornam ao ponto de partida, os tais centros líbios que são um inferno, a Itália deveria visitar esses centros, a fim de constatar que os direitos humanos são respeitados e, paralelamente, verificar se existem imigrantes que possam ter necessidade de serem acolhidos como refugiados políticos.
Nenhuma destas condições é observada, embora nesta última categoria estejam, por exemplo, os que fogem da Eritreia, antiga colónia italiana e onde existem ainda tantos sinais que a ligam à Itália. Desgraçadamente, também ali existe a brutal ditadura de Isayas Afeworki, o presidente que militarizou o país e o atirou para a indigência.

Os infelizes eritreus fogem de um inferno, mas vão encontro a um outro não menos feroz, quando devem estacionar na Líbia; ao encontro da morte, quando são vítimas dos “traficantes de homens” através das águas mediterrânicas.

Certamente que se torna natural a fuga de eritreus e o seu anseio de serem acolhidos na Itália.
Desconhecem, todavia, que o ministro da Administração Interna faz parte daquele grupo político – Liga Norte - de xenófobos, grosseiros e primários. Também desconhecem que os sentimentos do primeiro-ministro são afins.

A principal técnica para arrebanhar votos é a criminalização do imigrante, instaurando um clima de medo: todos delinquentes, todos larápios, todos indignos de se tornarem cidadãos italianos.

Esta táctica parece que também iluminou alguns politicastros da Casa Lusa. Espero que não pegue nem se alastre; seria uma canalhice que não quereria ver em Portugal.

Em Julho passado, os dois ramos do Parlamente aprovaram, definitivamente, o “Decreto-Lei Segurança”. Assim, a imigração clandestina passou a ser crime.
Normas severas contra este “grandes crime” que atenta à segurança da Itália, começando com seis meses de reclusão nos CIE - “Centros de Identificação e Expulsão”: autênticas prisões superlotadas para os sem papéis.

Porém, se trabalham clandestinamente em empresas agrícolas (aliás, como sucede no Alentejo) ou empresas de vário género, por cem euros mensais, catorze horas de trabalho por dia, maltratados, escravizados, a segurança do território é já um tema que interessa pouco.

Mercê desta lei infame - contestada pela oposição e todas as pessoas de bom senso – sucede que muitos barcos de pesca não se aproximam ou fingem não ver as embarcações de imigrantes à deriva, pois correm o risco, se os recolhem e transportam a terra, de serem processados por favorecimento do crime de clandestinidade.
Devido ao medo e a graves prejuízos das empresas de pesca, as regras do mar – socorrer quem está em perigo – começam a ser ignoradas. A isto se chegou!

Ainda bem que as Hierarquias Católicas insurgiram vigorosa e ruidosamente contra esta nova barbárie.
Grosseiramente, o líder da “Liga Norte”, Bossi, respondeu que os bispos dizem palavras sem sentido. Se este problema as preocupa, que levem os imigrantes clandestinos para o Vaticano. Troglodita dixit!

Compreende-se os problemas de absorção de uma grande onda de migrantes que invade um país. O que não se pode compreender nem aceitar é a desumanidade como são vistos e tratados - e não existem argumentos que possam convencer-me do contrário.
Com boa vontade e inteligência, leis justas e bem aplicadas, encontra-se sempre uma solução humanamente digna para problemas deste género.
Alda M. Maia

2 Comments:

At 10:39 da tarde, Blogger Manuela Araújo said...

Olá D. Alda

Gostei muito deste seu comovente texto de chamada de atenção.

Pois esses povos de uma África paupérrima, explorada pelos gananciosos que o Ocidente conhece e tolera, conivente, esses povos que morrem de fome, e assim arriscam à morte na procura de algum futuro, e não merecem ser tratados como gente que são e que já sofreu demais? Afinal, que globalização é essa? Somos todos ou não filhos do mesmo planeta?

Um beijinho, obrigada e parabéns por tão tocante texto. Que muitos a ouçam.

 
At 5:43 da tarde, Blogger Alda M. Maia said...

Ler o que se passou e conhecer os pormenores de toda aquela trágica odisseia, a Nelinha nem pode imaginar a indignação e angústia que se prova, perante aqueles mortos que ninguém socorreu.

Sabe o que também me deixa estarrecida? A desumanidade e o egoísmo que provêm, precisamente, de países donde as suas populações também tiveram (e ainda têm) de emigrar. Mais um ditado certíssimo: “Nunca sirvas a quem serviu nem peças a quem pediu “. Isto, além da indiferença dos modernos anafados que entendem a globalização como expansão de negócios e de ganhos financeiros apoiados em malabarismos planetários.
Um beijinho

PS
O seu blogue está cada vez mais interessante

 

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