domingo, agosto 10, 2008

QUALQUER COINCIDÊNCIA,
PURÍSSIMA CASUALIDADE


Quando quero afastar pensamentos difíceis de suportar, refugio-me naquilo a que chamo leitura amena, melhor dizendo: alegre. Uma destas são “os sonetos e as fábulas em verso do irónico fustigador da sociedade burguesa”: Trilussa.

Já várias vezes aqui me referi a este conhecido e muito citado poeta dialectal romano. Divertido, quando decide “alargar” o sufrágio universal - aliás, é sempre divertido!
Mas antes de continuar…

No Correio da Manhã do passado dia 4, lê-se uma reportagem muito completa sobre as “saídas da casa da democracia” – sugestiva esta imagem do Parlamento: a casa da democracia!

Deve ser uma casa bem pouco acolhedora, se já 38 deputados a abandonaram - “um aumento de 31% face a igual período na legislatura anterior” – e 119 suspenderam as funções.
Mas não se trata de bom ou mau acolhimento. Muito simplesmente, mais parece uma “casa” que se escolheu sem ter na devida conta o respeito pelo assento que cada um dos 230 deputados ocupa; sem o devido respeito pela única e importante função por que foram eleitos.
Representantes do povo? Dir-se-ia que uma boa percentagem, pouco edificante, apenas representa os próprios interesses. Mas isso não é novidade para ninguém.

O maior número de renunciadores são presidentes de câmaras ou ligados a cargos autárquicos.
Se já pensavam renunciar, por que se apresentaram ou se prestaram a ser escolhidos? Papel de caça-votos? E isso é honesto, seja perante o município que dirigem, seja perante o Parlamento? Os partidos que os incluíram na lista de candidatos agiram com seriedade? A caça ao voto tudo justifica?

Da “Casa da Democracia” também voaram outros parlamentares com destino a administração de empresas e escritórios de advogados. Um bom trampolim de voo!

Mas voltemos a falar do sufrágio universal de Trilussa, “alargado” aos animais.

****

Suffraggio universale” (escrito em dialecto romano)

Un’Aquila diceva: - Dar momento / che adesso c’è er suffraggio universale, / bisognerà che puro l’animale / ciabbia un rappresentante ar Parlamento; / dato l’allargamento, o prima o poi, / doppo le donne lo daranno a noi.

Ma allora chi faremo deputato? / Quale sarà la bestia indipennente / che rappresenti più direttamente / la classe animalesca de lo Stato? / E a l’occasione esterni er su’ pensiero / senza leccà le zampe ar Ministero?

Per conto mio, la sola che sia degna / de bazzicà la Cammera e connosca / l’idee de l’onorevoli è la Mosca, / perché vola, s’intrufola, s’ingegna, / e in fatto de partiti, sia chi sia, / passa sopra a qualunque porcheria!

1 gennaio 1914

****

Sufrágio Universal

Uma Águia dizia: - dado o caso
Que agora existe o sufrágio universal,
Torna-se necessário que também o animal
Tenha um representante no Parlamento.
Visto o alargamento, mais cedo ou mais tarde,
Depois das mulheres, dá-lo-ão a nós.

Mas então, quem faremos deputado?
Qual será o bicho independente
Que represente mais directamente
A classe animalesca do Estado
E que na devida ocasião manifeste o seu pensamento
Sem lamber as patas ao Ministério?

Na minha opinião, a única que seja digna
De frequentar a Câmara e conheça
As funções dos deputados é a Mosca:
Porque voa, intromete-se, inventa;
E no que diz respeito a partidos, seja quem for,
Passa por cima de qualquer porcaria!

Janeiro, 01-1914
.
****************
Alda M. Maia