EM 1938, HOUVE O MANIFESTO DA RAÇA
EM 2008, O INIMIGO É O CIGANO
Tinha outros assuntos na ideia como tema de conversa, mas a minha atenção fugiu para outro lado – aliás, esse outro lado já de há tempos que me ocupava a mente. Mas, hoje, a desviá-la foi um artigo de Dijana Pavlovic, uma jovem actriz proveniente da Sérvia, de origem cigana e muito atenta aos problemas da etnia a que pertence.
E de novo, as hodiernas anomalias italianas.
O Ministro da Administração Interna, Roberto Maroni – Liga Norte - decretou que se deveria efectuar o recenseamento dos ciganos residentes na Itália (devo recordar que, cerca de 70 000, têm nacionalidade italiana!) e a todos, inclusive as crianças, tirar as impressões digitais - nas fichas, também são registadas a origem e a religião. Muito elucidativo!
Alegam que são recolhidas as impressões digitais das crianças, somente para as proteger e no interesse dos menores sem identidade. Como se não houvesse outros sistemas, mais dignos e eficazes, de protecção aos menores!
Registar crianças ciganas com impressões digitais e outros dados identificativos, unicamente por uma questão étnica e discriminatoriamente em relação às outras crianças, a mim dá volta ao estômago, tanta é a náusea!
Para melhor compreender a anomalia desta decisão ministerial, ao contrário do que sucede em Portugal com o Bilhete de Identidade, por exemplo, na Itália não há impressões digitais nos documentos.
Praticamente, cria-se uma espécie de cadastro geral dos ciganos que vivem no solo italiano. Assim, tudo isto não passa de uma vergonhosa, indecente, arrogante, estúpida discriminação racial.
A revista “Família Cristã” - três milhões e meio de leitores – num seu editorial, sem recorrer a eufemismos, chama-lhe: “A indecente proposta racista de tirar as impressões digitais às crianças”
Os ciganos que delinqúem, ou já estão cadastrados ou devem ser perseguidos, intransigentemente, pela lei. Posto isto, não vejo o motivo por que se deva estigmatizar os demais que se comportam normalmente, tendo como base a questão étnica. Ademais, nunca esqueçamos que ainda existem sobreviventes dos campos de extermínio hitlerianos; alguns deles vivem na Itália. Também nessa altura, foram recenseados pelos nazis
Mesmo em Portugal, é suficiente pronunciar o nome cigano para que haja uma reacção negativa e discriminatória: são todos ladrões, traficantes de droga, etc.. Esse «todos» nunca me agradou; recuso-me a aceitar generalizações e um racismo que nem sequer é disfarçado.
O Ministro Maroni diz que não recua: entro o mês de Outubro, as fichas devem completar-se.
Como é óbvio, o governo e compadres apoiam-no e justificam-no, inclusivamente a neta de Mussolini, Alessandra Mussolini, presidente da “Comissão para a Infância”.
“Não admira o silêncio da nova presidente da Comissão Infância, porque os cadastros étnicos e religiosos fazem parte do ADN familiar e, finalmente, tornam a ser património do governo” – “Família Cristã”.
A estocada é certeira!
No mínimo, aquela gentinha não corará de vergonha?
Não, não cora. Fica impassível e a Mussolini ataca: “A intervenção de “Família Cristã” é pouco cristã e muito facciosa. Além disso, evocar o meu ADN demonstra escasso respeito pelas instituições”.
Pobres instituições, que vêem tudo virado do avesso!
Acima, refiro-me a um artigo de Dijana Pavlovic, publicado ontem no jornal L’Unità.
È comovente e vai direita a tantas situações reais que os responsáveis encaram de um modo muito sui generis. Os preconceitos falam sempre mais alto. Transcrevo alguns parágrafos.
"Tantas vezes, nos últimos anos, me senti impotente, quando encontrei situações de abuso em relação a menores ciganos e as denunciei à polícia e à Assistência Social. Durante um ano, combati para que uma criança fosse afastada dos pais e colocada num ambiente protegido, pois era vítima de violência dentro da família. Sempre me reponderam que as crianças ciganas não são admitidas nessas comunidades, visto que fogem sempre; para elas nada havia que fazer".
E seguindo a lógica do governo, a melhor medida é cadastrá-las. Uso a palavras cadastro, cadastrar, porque me parecem as mais adequadas, já que toda a operação é efectuada pela polícia e a finalidade não é assim tão obscura. Mas continuemos.
"Em Rho (cidade lombarda), crianças rom - é o termo mais comum, na Itália, para a palavra cigano – telefonaram ao “Telefone Azul", porque os pais as forçavam a pedir esmola.
Alguém se ocupou deste caso e procurou compreender as razões deste gesto? Ninguém.
Dar publicidade a um exemplo de consciencialização, fruto de uma situação positiva de um acampamento regular, onde as crianças frequentam a escola, contrasta com o preconceito racista e com a necessidade de sustentar uma política que cria uma emergência inexistente, escondendo problemas muito mais sérios e profundos de um país em crise". O negrito é meu
"Eu venho de um País devastado pela guerra civil, bombardeamentos, ditadura e liberdades negadas. Mas especular, deste modo, sobre as crianças, é algo mais que uma infâmia; é um crime moral".
****
As reacções contra esta deliberação da Administração Interna têm sido fortes, abrangendo todos os sectores da sociedade italiana.
Obviamente que os latentes racistas - mas pessoas de bem, pois claro!... – aprovam estas medidas governativas. Nem lhes passa pela ideia que dão um triste espectáculo do País a que pertencem. E muito pior ainda: não se detêm a reflectir sobre a herança pesada das leis racistas de 1938.
O Prefeito de Roma disse não às directivas ministeriais. Recusa tirar impressões digitais às crianças. Merece um sincero aplauso.
Alda M. Maia
EM 2008, O INIMIGO É O CIGANO
Tinha outros assuntos na ideia como tema de conversa, mas a minha atenção fugiu para outro lado – aliás, esse outro lado já de há tempos que me ocupava a mente. Mas, hoje, a desviá-la foi um artigo de Dijana Pavlovic, uma jovem actriz proveniente da Sérvia, de origem cigana e muito atenta aos problemas da etnia a que pertence.
E de novo, as hodiernas anomalias italianas.
O Ministro da Administração Interna, Roberto Maroni – Liga Norte - decretou que se deveria efectuar o recenseamento dos ciganos residentes na Itália (devo recordar que, cerca de 70 000, têm nacionalidade italiana!) e a todos, inclusive as crianças, tirar as impressões digitais - nas fichas, também são registadas a origem e a religião. Muito elucidativo!
Alegam que são recolhidas as impressões digitais das crianças, somente para as proteger e no interesse dos menores sem identidade. Como se não houvesse outros sistemas, mais dignos e eficazes, de protecção aos menores!
Registar crianças ciganas com impressões digitais e outros dados identificativos, unicamente por uma questão étnica e discriminatoriamente em relação às outras crianças, a mim dá volta ao estômago, tanta é a náusea!
Para melhor compreender a anomalia desta decisão ministerial, ao contrário do que sucede em Portugal com o Bilhete de Identidade, por exemplo, na Itália não há impressões digitais nos documentos.
Praticamente, cria-se uma espécie de cadastro geral dos ciganos que vivem no solo italiano. Assim, tudo isto não passa de uma vergonhosa, indecente, arrogante, estúpida discriminação racial.
A revista “Família Cristã” - três milhões e meio de leitores – num seu editorial, sem recorrer a eufemismos, chama-lhe: “A indecente proposta racista de tirar as impressões digitais às crianças”
Os ciganos que delinqúem, ou já estão cadastrados ou devem ser perseguidos, intransigentemente, pela lei. Posto isto, não vejo o motivo por que se deva estigmatizar os demais que se comportam normalmente, tendo como base a questão étnica. Ademais, nunca esqueçamos que ainda existem sobreviventes dos campos de extermínio hitlerianos; alguns deles vivem na Itália. Também nessa altura, foram recenseados pelos nazis
Mesmo em Portugal, é suficiente pronunciar o nome cigano para que haja uma reacção negativa e discriminatória: são todos ladrões, traficantes de droga, etc.. Esse «todos» nunca me agradou; recuso-me a aceitar generalizações e um racismo que nem sequer é disfarçado.
O Ministro Maroni diz que não recua: entro o mês de Outubro, as fichas devem completar-se.
Como é óbvio, o governo e compadres apoiam-no e justificam-no, inclusivamente a neta de Mussolini, Alessandra Mussolini, presidente da “Comissão para a Infância”.
“Não admira o silêncio da nova presidente da Comissão Infância, porque os cadastros étnicos e religiosos fazem parte do ADN familiar e, finalmente, tornam a ser património do governo” – “Família Cristã”.
A estocada é certeira!
No mínimo, aquela gentinha não corará de vergonha?
Não, não cora. Fica impassível e a Mussolini ataca: “A intervenção de “Família Cristã” é pouco cristã e muito facciosa. Além disso, evocar o meu ADN demonstra escasso respeito pelas instituições”.
Pobres instituições, que vêem tudo virado do avesso!
Acima, refiro-me a um artigo de Dijana Pavlovic, publicado ontem no jornal L’Unità.
È comovente e vai direita a tantas situações reais que os responsáveis encaram de um modo muito sui generis. Os preconceitos falam sempre mais alto. Transcrevo alguns parágrafos.
"Tantas vezes, nos últimos anos, me senti impotente, quando encontrei situações de abuso em relação a menores ciganos e as denunciei à polícia e à Assistência Social. Durante um ano, combati para que uma criança fosse afastada dos pais e colocada num ambiente protegido, pois era vítima de violência dentro da família. Sempre me reponderam que as crianças ciganas não são admitidas nessas comunidades, visto que fogem sempre; para elas nada havia que fazer".
E seguindo a lógica do governo, a melhor medida é cadastrá-las. Uso a palavras cadastro, cadastrar, porque me parecem as mais adequadas, já que toda a operação é efectuada pela polícia e a finalidade não é assim tão obscura. Mas continuemos.
"Em Rho (cidade lombarda), crianças rom - é o termo mais comum, na Itália, para a palavra cigano – telefonaram ao “Telefone Azul", porque os pais as forçavam a pedir esmola.
Alguém se ocupou deste caso e procurou compreender as razões deste gesto? Ninguém.
Dar publicidade a um exemplo de consciencialização, fruto de uma situação positiva de um acampamento regular, onde as crianças frequentam a escola, contrasta com o preconceito racista e com a necessidade de sustentar uma política que cria uma emergência inexistente, escondendo problemas muito mais sérios e profundos de um país em crise". O negrito é meu
"Eu venho de um País devastado pela guerra civil, bombardeamentos, ditadura e liberdades negadas. Mas especular, deste modo, sobre as crianças, é algo mais que uma infâmia; é um crime moral".
****
As reacções contra esta deliberação da Administração Interna têm sido fortes, abrangendo todos os sectores da sociedade italiana.
Obviamente que os latentes racistas - mas pessoas de bem, pois claro!... – aprovam estas medidas governativas. Nem lhes passa pela ideia que dão um triste espectáculo do País a que pertencem. E muito pior ainda: não se detêm a reflectir sobre a herança pesada das leis racistas de 1938.
O Prefeito de Roma disse não às directivas ministeriais. Recusa tirar impressões digitais às crianças. Merece um sincero aplauso.
Alda M. Maia
1 Comments:
Fiquei, obviamente impressionada, até indignada, com a situação descrita no seu post. Sou naturalmente contra toda e qualquer discriminação quer pela negativa, como é o caso, quer pela positiva; e refiro-me àquilo que eu apelido de "ditaduras das minorias" em que muitas vezes um punhado de pessoas (comummente pertencentes a uma etnia específica)consegue, através do terror, impor condições e privilégios em relação a todos os outros. Isso acontece muito as escolas e em determinados bairros e, confesso, que também me impressiona.
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