HISTÓRIA ROCAMBOLESCA DE UM PROCESSO
Poderia ser um processo como tantos, mas a personagem principal afugenta a normalidade.
O Supremo Tribunal de Justiça italiano sentenciou que o processo contra o célebre advogado inglês David Mills, por uma diferença de três meses e meio, deveria considerar-se prescrito.
Logo, as precedentes sentenças de primeira e segunda instâncias, que o condenaram a quatro anos e meio de prisão, ficavam sem efeito, embora confirmando a culpabilidade do imputado.
O advogado Mills prestou falsas declarações a favor de Berlusconi e, por tal motivo, foi premiado com 600 mil dólares, depositados num banco suíço.
Depondo, por duas vezes, no Tribunal de Milão, primeiro confessou e depois retratou. Escrevera, todavia, uma carta ao seu contabilista, onde esclarecia a origem daquele dinheiro: “em Tribunal, tivera de fazer acrobacias, a fim de não comprometer Berlusconi, pois se dissesse tudo o que sabia, ter-lhe-ia criado graves problemas”.
Em 2004, a carta fatal chegou ao conhecimento da Procura de Milão. Havia provas sólidas para ser condenado.
Esta prescrição entra na categoria das leis ad personam, isto é, as leis aprovadas pela maioria de Berlusconi, segundo as conveniências do chefe. E tanto assim que, em 2005, uma nova lei diminuiu de 15 a 10 anos os termos máximos para corrupções judiciárias.
Porém, desta vez, o corrupto salva-se da cadeia e o corruptor Berlusconi, pelas várias suspensões, alongamentos e tentativas de se crer acima da lei, “pois é um eleito do povo”, ainda deve prestar contas à justiça, visto que o Supremo não o ilibou.
As sequências de toda a história deste processo e as várias reacções, após a pronúncia do Supremo, constituiriam um excelente exemplo de um pitoresco caso judiciário.
Em Outubro de 2006, Berlusconi e Mills são levados a juízo por “por corrupção em actos judiciários”. Deu-se início à comédia.
Houve adiamentos; recusa de dois juízes, mas não aceites; a promulgação de uma lei, chamada “Lodo Alfano”, que suspendia os processos aos altos cargos de Estado e o processo continuou apenas com o imputado Mills. O Tribunal Constitucional anulou essa lei por inconstitucionalidade, obviamente.
Entretanto, o “eleito do povo italiano”, despeitado por a Justiça não lhe render homenagem e tratá-lo como um qualquer cidadão que prevaricou, nunca se cansou de lançar anátemas contra quem essa justiça deve aplicar.
David Mills (prescrito) fugiu à prisão, mas como não foi declarado inocente, não escapou às sanções acessórias: deve indemnizar a Presidência do Conselho de Ministros com 250 mil euros, por “dano à imagem”, além de 10 mil euros de despesas judiciárias.
Quando li esta parte das peripécias Mills-Berlusconi, não pude evitar uma gargalhada.
Fora o primeiro-ministro daquele período, Prodi, a dever constituir-se parte civil neste processo; será o co-imputado Berlusconi e actual Presidente do Conselho a ter a honra de encaixar a indemnização do condenado que corrompeu.
Esta, a pequena parte divertida. Surgem agora os intragáveis lados anómalos, para não dizer nauseantes: as reacções de Berlusconi e da coligação que o apoia, após a pronúncia do Supremo Tribunal de Justiça (em secções unidas).
Em primeiro lugar, o noticiário das 13,30 de RAIuno trocou o veredicto prescrição por absolvição, insistindo duas vezes na manipulação da verdade - esclareça-se que o director deste telejornal foi sugerido (imposto) pelo chefe do Governo.
Os jornais de que é proprietário saíram com grandes títulos, insistindo na alteração da verdade: “Vitória de Berlusconi, bofetada aos ministérios públicos de Milão”.
Nada de estranho: é este o género de informação que diariamente é insuflado no País.
Os apoiantes do divino primeiro-ministro, seguindo na mesma esteira, prorromperam em manifestações de grande júbilo, não se esquecendo, quais papagaios amestrados, de atacar a magistratura: “derrotado o rito milanês; desmascarou-se o uso instrumental da justiça que os ministérios públicos de Milão puseram em acto”, etc., etc.
Onde é que viram tudo isto na sentença de prescrição? Em vez de júbilo, esperar-se-ia discrição e, digamos, vergonha. Se o Supremo confirmou a existência do crime, não seria motivo para reflectir seriamente?
Esta gentinha fará mesmo parte da classe política ou não passa de uma congregação de servidores ou vassalos sem dignidade nem independência de opinião? Propendo para esta última categoria.
Por último, falemos da reacção do imputado corruptor, o senhor Berlusconi.
A primeira fase foi de alegria e alívio, pois sabe que o processo que lhe diz respeito será prescrito - poderia ter um rasgo de dignidade e renunciar à prescrição, mas conhecendo os precedentes, não creio que o fará.
“O caso Mills é pura invenção, um absurdo. Agora quero plena absolvição”. Esquece-se que é nos tribunais que se obtém a absolvição e não com leis talhadinhas à medida.
A segunda fase é a mais alarmante, a mais repulsiva, a mais intolerável num homem de Estado quando, em público, lança insultos, ataques violentos e ameaças legislativas que punam os magistrados. Desta vez, mais indecentes que anteriormente.
“A magistratura é um bando de talibãs que tenta alcançar fins eversivos; no Parlamento apresentaremos leis que não agradarão a estes talibãs; assim é um estado de polícia…
Os impropérios alarmaram o Presidente da República, levando-o a intervir e aconselhar moderação nos ataques a quem cumpre o seu dever de investigar e fazer cumprir a lei.
Quando é que os italianos, em massa, manifestam uma tardia, mas sacrossanta indignação?
Poderia ser um processo como tantos, mas a personagem principal afugenta a normalidade.
O Supremo Tribunal de Justiça italiano sentenciou que o processo contra o célebre advogado inglês David Mills, por uma diferença de três meses e meio, deveria considerar-se prescrito.
Logo, as precedentes sentenças de primeira e segunda instâncias, que o condenaram a quatro anos e meio de prisão, ficavam sem efeito, embora confirmando a culpabilidade do imputado.
O advogado Mills prestou falsas declarações a favor de Berlusconi e, por tal motivo, foi premiado com 600 mil dólares, depositados num banco suíço.
Depondo, por duas vezes, no Tribunal de Milão, primeiro confessou e depois retratou. Escrevera, todavia, uma carta ao seu contabilista, onde esclarecia a origem daquele dinheiro: “em Tribunal, tivera de fazer acrobacias, a fim de não comprometer Berlusconi, pois se dissesse tudo o que sabia, ter-lhe-ia criado graves problemas”.
Em 2004, a carta fatal chegou ao conhecimento da Procura de Milão. Havia provas sólidas para ser condenado.
Esta prescrição entra na categoria das leis ad personam, isto é, as leis aprovadas pela maioria de Berlusconi, segundo as conveniências do chefe. E tanto assim que, em 2005, uma nova lei diminuiu de 15 a 10 anos os termos máximos para corrupções judiciárias.
Porém, desta vez, o corrupto salva-se da cadeia e o corruptor Berlusconi, pelas várias suspensões, alongamentos e tentativas de se crer acima da lei, “pois é um eleito do povo”, ainda deve prestar contas à justiça, visto que o Supremo não o ilibou.
As sequências de toda a história deste processo e as várias reacções, após a pronúncia do Supremo, constituiriam um excelente exemplo de um pitoresco caso judiciário.
Em Outubro de 2006, Berlusconi e Mills são levados a juízo por “por corrupção em actos judiciários”. Deu-se início à comédia.
Houve adiamentos; recusa de dois juízes, mas não aceites; a promulgação de uma lei, chamada “Lodo Alfano”, que suspendia os processos aos altos cargos de Estado e o processo continuou apenas com o imputado Mills. O Tribunal Constitucional anulou essa lei por inconstitucionalidade, obviamente.
Entretanto, o “eleito do povo italiano”, despeitado por a Justiça não lhe render homenagem e tratá-lo como um qualquer cidadão que prevaricou, nunca se cansou de lançar anátemas contra quem essa justiça deve aplicar.
David Mills (prescrito) fugiu à prisão, mas como não foi declarado inocente, não escapou às sanções acessórias: deve indemnizar a Presidência do Conselho de Ministros com 250 mil euros, por “dano à imagem”, além de 10 mil euros de despesas judiciárias.
Quando li esta parte das peripécias Mills-Berlusconi, não pude evitar uma gargalhada.
Fora o primeiro-ministro daquele período, Prodi, a dever constituir-se parte civil neste processo; será o co-imputado Berlusconi e actual Presidente do Conselho a ter a honra de encaixar a indemnização do condenado que corrompeu.
Esta, a pequena parte divertida. Surgem agora os intragáveis lados anómalos, para não dizer nauseantes: as reacções de Berlusconi e da coligação que o apoia, após a pronúncia do Supremo Tribunal de Justiça (em secções unidas).
Em primeiro lugar, o noticiário das 13,30 de RAIuno trocou o veredicto prescrição por absolvição, insistindo duas vezes na manipulação da verdade - esclareça-se que o director deste telejornal foi sugerido (imposto) pelo chefe do Governo.
Os jornais de que é proprietário saíram com grandes títulos, insistindo na alteração da verdade: “Vitória de Berlusconi, bofetada aos ministérios públicos de Milão”.
Nada de estranho: é este o género de informação que diariamente é insuflado no País.
Os apoiantes do divino primeiro-ministro, seguindo na mesma esteira, prorromperam em manifestações de grande júbilo, não se esquecendo, quais papagaios amestrados, de atacar a magistratura: “derrotado o rito milanês; desmascarou-se o uso instrumental da justiça que os ministérios públicos de Milão puseram em acto”, etc., etc.
Onde é que viram tudo isto na sentença de prescrição? Em vez de júbilo, esperar-se-ia discrição e, digamos, vergonha. Se o Supremo confirmou a existência do crime, não seria motivo para reflectir seriamente?
Esta gentinha fará mesmo parte da classe política ou não passa de uma congregação de servidores ou vassalos sem dignidade nem independência de opinião? Propendo para esta última categoria.
Por último, falemos da reacção do imputado corruptor, o senhor Berlusconi.
A primeira fase foi de alegria e alívio, pois sabe que o processo que lhe diz respeito será prescrito - poderia ter um rasgo de dignidade e renunciar à prescrição, mas conhecendo os precedentes, não creio que o fará.
“O caso Mills é pura invenção, um absurdo. Agora quero plena absolvição”. Esquece-se que é nos tribunais que se obtém a absolvição e não com leis talhadinhas à medida.
A segunda fase é a mais alarmante, a mais repulsiva, a mais intolerável num homem de Estado quando, em público, lança insultos, ataques violentos e ameaças legislativas que punam os magistrados. Desta vez, mais indecentes que anteriormente.
“A magistratura é um bando de talibãs que tenta alcançar fins eversivos; no Parlamento apresentaremos leis que não agradarão a estes talibãs; assim é um estado de polícia…
Os impropérios alarmaram o Presidente da República, levando-o a intervir e aconselhar moderação nos ataques a quem cumpre o seu dever de investigar e fazer cumprir a lei.
Quando é que os italianos, em massa, manifestam uma tardia, mas sacrossanta indignação?
Alda M. Maia
2 Comments:
D. Alda,
Desta vez fiquei sem palavras!
Isto é inconcebivel num estado de direito! Como é que a Itália chegou a uma coisada destas?
Um processo, depois de entrar em Tribunal e estar em tempo, nunca mais prescreve...
Apetece-me dizer: CREEEEDO!
Um grande beijinho.
Boa noite, Teresinha
Não é como a Itáia chegou a uma coisa destas, embora tenha a sua importância: é como continua a chafurdar numa coisa destas!
O teu CREEEEDO!é bem expressivo.
Um beijinho
Alda
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