A CORAGEM DE REBELAR-SE
O caso de Lubna Ahmed al-Hussein, a jornalista sudanesa que se rebelou à lei das 40 chicotadas por uso de “vestuário indecente”, tornou-se conhecido nos quatro cantos da terra e bom seria se casos análogos fossem difundidos com o mesmo clamor que este suscitou.
A história é conhecida: Lubna e outras doze senhoras que se encontravam, em Julho passado, num restaurante, foram detidas pela polícia especial (polícia religiosa) por usarem calças: “vestuário indecente” que o artigo 152 do código penal sudanês pune com uma multa ou 40 chicotadas… ou as duas coisas. Como alternativa à multa, haverá trinta dias de prisão.
A jornalista e funcionária da ONU no Sudão foi condenada a uma pena de 40 vergastadas. Ulteriormente, esta pena foi comutada numa multa de 140 euros.
Decidiu não aceitar a pena e preferir a cadeia, renunciando ao cargo na ONU que lha dava imunidade e levando para a frente o protesto contra essa grave injustiça que atinge as mulheres sudanesas.
Numa entrevista de Lubna a El País, fica-se a saber que as outras doze senhoras foram “mimoseadas” com dez vergastadas e uma multa de 75€. Sete euros e meio por cada chicotada: indemnização, se calhar, para o desgaste dos chicotes!
Em virtude desta lei, dezenas de milhares de senhoras foram presas e humilhadas com o açoite.
É insuportável que existam estes primitivos, alfabetizados, que escrevem e fazem aplicar leis desta natureza. É repugnante que se sirvam da religião para dar cobertura a tradições bárbaras que nada têm que as possa justificar: quer perante a fé cuja pureza dizem defender, quer perante a dignidade a que todo o ser humano tem direito.
Lubna Hussein esteve apenas 22 horas na cadeia. O sindicato dos jornalistas sudaneses pagou os 140 euros de multa – assim convinha ao governo de Cartum – mas a jornalista não ficou satisfeita. Deseja continuar a batalha. Se antes usava calças ocasionalmente, assegura que, de futuro, usá-las-á todos os dias.
Dada a sua posição na sociedade sudanesa, pôde rebelar-se, corajosamente, e dar a conhecer, fora do seu País, a aberração a que as mulheres sudanesas são submetidas. Porém, outras vítimas destas barbáries, cidadãs comuns, cidadãs humildes e anónimas de outros países, quem as protege do machismo primário dos seus correligionários?
Transcrevo um artigo do escritor marroquino, muçulmano, Tahar Ben Jelloun. É um artigo que merece ser lido com interesse e atenção.
**** ****
QUANDO A BARBÁRIE SE IMPÕE
“O que está em curso é a colisão entra quem trata as mulheres como bestas e quem as trata como seres humanos”
O choque de civilizações sobressai, por vezes, em situações ridículas, em comportamentos estúpidos, fruto de grande pesporrência e ignorância. Um bom exemplo é a cena a que assisti, há dias, quando me encontrava no Sul de Marrocos.
Numa estrada estreita e cheia de buracos, chega um automóvel a grande velocidade: um carro desportivo, talvez um Porsche. Ao volante está um rapaz moderno, cabeça rapada, óculos escuros e cigarro na boca. O veículo ter-lhe-ia custado uma fortuna: quanto uma pradaria, o apanágio de um príncipe ou uma vida inteira de trabalho, no estrangeiro.
O jovem, claramente orgulhoso do seu veículo, trava no lugar onde nos encontrávamos e mostra a paisagem a uma mulher sentada a seu lado. Mas esta mulher está completamente envolvida por um véu negro e óculos escuros a cobrir a parte livre do rosto. Um fantasma, uma coisa quase imóvel e muda. Recorda-me as últimas páginas de “Vozes de Marraquexe” de Elias Canetti, nas quais se fala de uma coisa negra que se move apenas, onde não se distingue um corpo nem os seus membros – mas talvez, lá escondido, haja um corpo humano.
O rapaz desce da Porsche, acende um cigarro e diz em francês: “É bonita a minha terra!” A mulher sequestrada no sudário negro anui, mas não abre boca. Sem que eu lhe tenha dirigido a palavra, diz-me ele: “Casei-me e agora parto com a minha mulher. Todavia, há um problema no que concerne os documentos: pretendem uma fotografia de identidade com o rosto descoberto. São doidos. Eis como as coisas andam!”. Entretanto, vai afagando o pára-lamas do automóvel como se acariciasse as pernas de uma linda rapariga nua.
Pelo sotaque, depreendo que provém do Rif, zona onde se cultiva a matéria-prima do haxixe, o kif.
Dinheiros fáceis e arrogância estúpida. Está ao volante como se estivesse no ponto de descolar em direcção à Lua; ao mesmo tempo, trata a mulher como uma escrava, melhor, como uma coisa: um pacote envolvido em paramentos fúnebres. E como seria de esperar, pôs-se a falar ao telemóvel, em holandês. Vive em Roterdão, avaliando pela matrícula do carro.
A “coisa” segui-lo-á para o seu país de imigração ou encarregará os seus pais de lha enviarem como um pacote postal?
Quando avia o motor, a fim de partir, fez o melhor que pôde para envolver-nos numa nuvem de pó. A coisa negra já não é visível.
Não tive intenções de dirigir-lhe a palavra. Não serviria de nada. É um indivíduo que tem medo das mulheres. O seu problema é íntimo e entra no campo da psicoterapia. Tem medo que a alguém lhe roube a mulher, que possa ser violada com um olhar, desejada em sonho. È por isso que a vigia. Mas um dia, a pobrezinha desperta e põe em acção a sua desforra. Já sucedeu e voltará a suceder.
Aquele indivíduo é o perfeito exemplo que serve para ilustrar todas as contradições de uma mentalidade que remonta à idade da pedra, mas com um pé no século XXI. É um dos que usam os meios técnicos mais sofisticados, mas tratam a própria esposa como mais um animal da manada.
Situações como esta foram denunciadas, com força e coragem, nos princípios de Julho, por uma mulher árabe - uma psicóloga que vive em Los Angeles - durante um debate com um teólogo egípcio e transmitido por Al Jazira.
Transcrevi as suas palavras e cito aqui algumas passagens: “O fenómeno a que assistimos hoje não é o choque de civilizações: é a contraposição entre mentalidades medievais e mentalidades do século XXI; entre civilização e atraso, barbárie e racionalidade, democracia e ditadura, liberdade e repressão. É a colisão entre quem trata a mulher como uma besta e quem a trata como um ser humano…”
Esta mulher fala com calma, destacando bem as palavras, e diz as suas verdades a um mundo no qual reina a hipocrisia e o obscurantismo.
Quer queiramos, quer não, hoje existem, efectivamente, dois mundos contrapostos: o mundo da liberdade e o mundo da barbárie. O mundo de quem fez demolir as estátuas budistas no Afeganistão, de quem manda os jovens a fazer-se explodir nos lugares públicos, de quem ameaça a paz no mundo, apelando-se a um islamismo absolutamente estranho a esta brutalidade e a esta loucura.
Exactamente como disse aquela mulher corajosa: “Os muçulmanos devem interrogar-se sobre o que devem fazer pela humanidade, antes de exigir que a humanidade os respeite”.
E pensar que o jovem imigrante que esguichou na sua Porsche, tendo ao lado a mulher de preto, estava convencido de ser um bom muçulmano!...
Tahar Ben Jelloun – semanário L’Espresso.
O caso de Lubna Ahmed al-Hussein, a jornalista sudanesa que se rebelou à lei das 40 chicotadas por uso de “vestuário indecente”, tornou-se conhecido nos quatro cantos da terra e bom seria se casos análogos fossem difundidos com o mesmo clamor que este suscitou.
A história é conhecida: Lubna e outras doze senhoras que se encontravam, em Julho passado, num restaurante, foram detidas pela polícia especial (polícia religiosa) por usarem calças: “vestuário indecente” que o artigo 152 do código penal sudanês pune com uma multa ou 40 chicotadas… ou as duas coisas. Como alternativa à multa, haverá trinta dias de prisão.
A jornalista e funcionária da ONU no Sudão foi condenada a uma pena de 40 vergastadas. Ulteriormente, esta pena foi comutada numa multa de 140 euros.
Decidiu não aceitar a pena e preferir a cadeia, renunciando ao cargo na ONU que lha dava imunidade e levando para a frente o protesto contra essa grave injustiça que atinge as mulheres sudanesas.
Numa entrevista de Lubna a El País, fica-se a saber que as outras doze senhoras foram “mimoseadas” com dez vergastadas e uma multa de 75€. Sete euros e meio por cada chicotada: indemnização, se calhar, para o desgaste dos chicotes!
Em virtude desta lei, dezenas de milhares de senhoras foram presas e humilhadas com o açoite.
É insuportável que existam estes primitivos, alfabetizados, que escrevem e fazem aplicar leis desta natureza. É repugnante que se sirvam da religião para dar cobertura a tradições bárbaras que nada têm que as possa justificar: quer perante a fé cuja pureza dizem defender, quer perante a dignidade a que todo o ser humano tem direito.
Lubna Hussein esteve apenas 22 horas na cadeia. O sindicato dos jornalistas sudaneses pagou os 140 euros de multa – assim convinha ao governo de Cartum – mas a jornalista não ficou satisfeita. Deseja continuar a batalha. Se antes usava calças ocasionalmente, assegura que, de futuro, usá-las-á todos os dias.
Dada a sua posição na sociedade sudanesa, pôde rebelar-se, corajosamente, e dar a conhecer, fora do seu País, a aberração a que as mulheres sudanesas são submetidas. Porém, outras vítimas destas barbáries, cidadãs comuns, cidadãs humildes e anónimas de outros países, quem as protege do machismo primário dos seus correligionários?
Transcrevo um artigo do escritor marroquino, muçulmano, Tahar Ben Jelloun. É um artigo que merece ser lido com interesse e atenção.
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QUANDO A BARBÁRIE SE IMPÕE
“O que está em curso é a colisão entra quem trata as mulheres como bestas e quem as trata como seres humanos”
O choque de civilizações sobressai, por vezes, em situações ridículas, em comportamentos estúpidos, fruto de grande pesporrência e ignorância. Um bom exemplo é a cena a que assisti, há dias, quando me encontrava no Sul de Marrocos.
Numa estrada estreita e cheia de buracos, chega um automóvel a grande velocidade: um carro desportivo, talvez um Porsche. Ao volante está um rapaz moderno, cabeça rapada, óculos escuros e cigarro na boca. O veículo ter-lhe-ia custado uma fortuna: quanto uma pradaria, o apanágio de um príncipe ou uma vida inteira de trabalho, no estrangeiro.
O jovem, claramente orgulhoso do seu veículo, trava no lugar onde nos encontrávamos e mostra a paisagem a uma mulher sentada a seu lado. Mas esta mulher está completamente envolvida por um véu negro e óculos escuros a cobrir a parte livre do rosto. Um fantasma, uma coisa quase imóvel e muda. Recorda-me as últimas páginas de “Vozes de Marraquexe” de Elias Canetti, nas quais se fala de uma coisa negra que se move apenas, onde não se distingue um corpo nem os seus membros – mas talvez, lá escondido, haja um corpo humano.
O rapaz desce da Porsche, acende um cigarro e diz em francês: “É bonita a minha terra!” A mulher sequestrada no sudário negro anui, mas não abre boca. Sem que eu lhe tenha dirigido a palavra, diz-me ele: “Casei-me e agora parto com a minha mulher. Todavia, há um problema no que concerne os documentos: pretendem uma fotografia de identidade com o rosto descoberto. São doidos. Eis como as coisas andam!”. Entretanto, vai afagando o pára-lamas do automóvel como se acariciasse as pernas de uma linda rapariga nua.
Pelo sotaque, depreendo que provém do Rif, zona onde se cultiva a matéria-prima do haxixe, o kif.
Dinheiros fáceis e arrogância estúpida. Está ao volante como se estivesse no ponto de descolar em direcção à Lua; ao mesmo tempo, trata a mulher como uma escrava, melhor, como uma coisa: um pacote envolvido em paramentos fúnebres. E como seria de esperar, pôs-se a falar ao telemóvel, em holandês. Vive em Roterdão, avaliando pela matrícula do carro.
A “coisa” segui-lo-á para o seu país de imigração ou encarregará os seus pais de lha enviarem como um pacote postal?
Quando avia o motor, a fim de partir, fez o melhor que pôde para envolver-nos numa nuvem de pó. A coisa negra já não é visível.
Não tive intenções de dirigir-lhe a palavra. Não serviria de nada. É um indivíduo que tem medo das mulheres. O seu problema é íntimo e entra no campo da psicoterapia. Tem medo que a alguém lhe roube a mulher, que possa ser violada com um olhar, desejada em sonho. È por isso que a vigia. Mas um dia, a pobrezinha desperta e põe em acção a sua desforra. Já sucedeu e voltará a suceder.
Aquele indivíduo é o perfeito exemplo que serve para ilustrar todas as contradições de uma mentalidade que remonta à idade da pedra, mas com um pé no século XXI. É um dos que usam os meios técnicos mais sofisticados, mas tratam a própria esposa como mais um animal da manada.
Situações como esta foram denunciadas, com força e coragem, nos princípios de Julho, por uma mulher árabe - uma psicóloga que vive em Los Angeles - durante um debate com um teólogo egípcio e transmitido por Al Jazira.
Transcrevi as suas palavras e cito aqui algumas passagens: “O fenómeno a que assistimos hoje não é o choque de civilizações: é a contraposição entre mentalidades medievais e mentalidades do século XXI; entre civilização e atraso, barbárie e racionalidade, democracia e ditadura, liberdade e repressão. É a colisão entre quem trata a mulher como uma besta e quem a trata como um ser humano…”
Esta mulher fala com calma, destacando bem as palavras, e diz as suas verdades a um mundo no qual reina a hipocrisia e o obscurantismo.
Quer queiramos, quer não, hoje existem, efectivamente, dois mundos contrapostos: o mundo da liberdade e o mundo da barbárie. O mundo de quem fez demolir as estátuas budistas no Afeganistão, de quem manda os jovens a fazer-se explodir nos lugares públicos, de quem ameaça a paz no mundo, apelando-se a um islamismo absolutamente estranho a esta brutalidade e a esta loucura.
Exactamente como disse aquela mulher corajosa: “Os muçulmanos devem interrogar-se sobre o que devem fazer pela humanidade, antes de exigir que a humanidade os respeite”.
E pensar que o jovem imigrante que esguichou na sua Porsche, tendo ao lado a mulher de preto, estava convencido de ser um bom muçulmano!...
Tahar Ben Jelloun – semanário L’Espresso.
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Alda M. Maia
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Alda M. Maia
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