domingo, novembro 16, 2008

OS HOMENS DO VATICANO

Sempre considerei as Hierarquias do Vaticano como a parte política do catolicismo, a parte directiva e representativa do mundo católico, obviamente, mas jamais a súmula ou o corpo da Igreja Católica.
Esta, para mim, é um mundo bem diferente. Acima de tudo, são os milhões de fiéis e um clero anónimo que compartilha e, consequentemente, conhece as alegrias e ânsias quotidianas dos que nela crêem, caminhando par a par.

Os homens do Vaticano, instalados no palácio, perderam (se é que alguma vez a tiveram) a humildade, a piedade, aquele olhar manso, doce e compreensivo de quem observa as realidades amargas de tantas vidas: precisamente, porque vivem na corte.

Estabeleceram “valores não negociáveis”; devem cumprir-se.
É justo que defendam estes princípios. No entanto, para eles, não são concebíveis interpretações que se aproximem de uma qualquer situação que se afaste desses valores inflexíveis, embora humanamente trágicas.

Nestas atitudes, apenas vejo uma retórica fria, fundamentalista, muito longe do comportamento daquele Cristo que veneramos. E fico indignada!

A notícia chegou aos nossos noticiários acerca do Supremo Tribunal de Justiça italiano, o qual emitiu uma sentença difícil e, num certo sentido, dramática: a suspensão da alimentação artificial a uma senhora, Eluana Englaro, em coma irreversível há quase dezassete anos – “estado vegetativo permanente”.

Tinha 21, quando, em Janeiro de 1992, sofreu um acidente de automóvel. Passados seis anos e após o diagnóstico de irrecuperabilidade, o pai desta jovem, filha única, reconhecido tutor oficial, pediu que a deixassem morrer em paz, respeitando o que fora um desejo da filha.
Anteriormente, perante uma situação idêntica que sucedera a um amigo, Eluana tinha manifestado uma vontade bem clara de jamais submeter-se a prolongar a vida em tais condições.

A batalha do pai, a fim que reconhecessem o direito que todos temos de desejar morrer normalmente e com dignidade, durou até estes dias.

A imprensa acompanhou o caso, caso este que sublevou muitas discussões, como era inevitável. A atitude do Vaticano foi peremptória: não é admissível.

Chegou-se à fase final. O Supremo, considerando rigorosamente todas as circunstâncias que atestavam a irreversibilidade, a morte cerebral, portanto a vida vegetativa de Eluana, assim como a vontade que esta exprimira, lavrou uma sentença equilibrada e no pleno respeito da Constituição (o jornal La Repubblica publicou o texto integral).

Considerando a angústia que tem envolvido os familiares de Eluana, a tremenda amargura e o drama de viver estas decisões, gostaria de ver os homens do Vaticano – pelo menos esses! - manter um silêncio discreto. Se não por caridade e piedade, ao menos por elegância e respeito pelas decisões de uma alta instituição, qual é o Supremo Tribunal de Justiça.

Que a mediocridade dos que estão no Governo e os meios de comunicação que os apoiam partissem ao ataque dos magistrados e repetissem, como papagaios amestrados, o que o Vaticano quer que digam – um homicídio de Estado; os juízes não tutelam a vida; é um horror monstruoso que nos devorará, etc., etc. - é já espectáculo normal.
O que choca é imediata reacção das Hierarquias Católicas, exibida numa linguagem violenta: eutanásia sancionada por direito; uma sentença grave do ponto de vista ético e moral; é desumano e um assassínio; uma decisão tragicamente errada... e por aí adiante!

O mais encolerizado é o cardeal Javier Lozano Barragan, “ministro da saúde” do Vaticano: “Não matar. Não se pode infligir uma morte terrível por fome e por sede. (…) Tirar-lhe-ão a água e alimento – isto é, água mineral e uns cremezinhos, segundo dá a entender o Sr. Cardeal!... - será um fim tremendo e contra todas as leis naturais. (…) Hidratar e alimentar aquele corpo não é encarniçamento terapêutico. (…) Vegetativo é um termo que se aplica às plantas, não a um ser humano”.

Li e reli por inteiro as declarações do Cardeal Barragan.
Julguei obter uma justificação lógica da defesa intransigente dos valores que as altas hierarquias católicas apelidam “não negociáveis” – neste caso, a sacralidade da vida.
Fiquei de boca aberta, ante a pobreza e banalidade dos argumentos!

A tensão arterial ter-lhe-ia sido poupada e não teria dado a impressão de cardeal limitado no poder de argumentação, se apenas tivesse dito: "o Vaticano não aceita a sentença… porque sim!..." O efeito seria o mesmo.

Devo confessar que não me desagradou a declaração de Bento XVI, numa conferência pastoral sobre as crianças: “É necessário encontrar o justo equilíbrio entre a insistência e desistência nos tratamentos médicos” – inteiramente de acordo.

Mas sobre a sentença, vejamos a opinião de quem verdadeiramente tem experiência, sentido de humanidade e sabe o que diz:

Quem se refere a homicídio e eutanásia não sabe do que está a falar. A eutanásia é dar veneno para terminar a vida. No caso em questão, interrompem-se tratamentos, toma-se consciência de que a medicina já não pode fazer absolutamente nada, pois não há esperança de recuperação. Submeter-se uma pessoa a terapias, significa arriscar-se a idolatrias técnicas, à renúncia do humanismo e também da caridade cristã.
No seu estado, não há nenhuma sensação nem pode senti-la. Portanto, não sofrerá a fome nem a sede. Ir-se-á como morriam todos, antes da invenção da nutrição artificial
– Ignazio Marino.
O Dr. Marino é médico, trabalhou nos centros de transplante em Cambridge e Pittsburgh – Estados Unidos. Titular de um currículo médico de grande relevo.

Não é homicídio nem eutanásia. Desejaria que a Igreja se exprimisse com mais prudência – Vito Mancuso: Teólogo e professor universitário.

Fecho com a descrição de um desenho satírico de um humorista italiano, Vauro.
Duas crianças pretinhas, muito magras. Diz uma delas: Já soubeste?! A Igreja diz que a morte por fome é um assassínio. Reponde a outra: Não te excites. Não se trata da nossa fome.
*****
Alda M. Maia

3 Comments:

At 11:14 da manhã, Blogger a d´almeida nunes said...

Bom dia, Alda. É que está mesmo um dia celestial, aqui em Leiria, neste momento.
Li com atenção o seu texto, como sempre resultado de análises apuradas dos temas que trata.
Este caso concreto simboliza, como sabemos, milhares de situações idênticas, a ocorrerem diariamente por esse Mundo fora.´
Não nos podem restar dúvidas quanto à necessidade imperiosa de não legalizar a eutanásia, sem que se prove científica e irrefutavelmente, que o ser humano referenciado já não vive. Muito simplesmente são-lhe mantidas artificialmente algumas funções vitais para que o seu coração continue a bater.
Mas sou, convictamente, a favor da Eutanásia.
E concordo consigo quando diz que a Hierarquia do Vaticano, a maior parte das vezes, não é capaz de se assumir com o Humanismo que apregoam para o Catolicismo.
Bastaria, para isso, que descessem à Terra para poderem sentir os problemas reais do Homem e lutassem, lado a lado connosco, com seriedade, por uma Vida digna e verdadeira.
Um grande abraço
António

 
At 12:21 da manhã, Blogger Donagata said...

Os homens do Vaticano são, como muito bem diz, isso mesmo : os homens do Vaticano. Preocupados com os problemas de estado, como em qualquer outro, com a economia, e com todos esses valores terrenos que não deixam grande margem para governar o seu "rebanho" com o interesse e o cuidado que necessitam.Porque é um estado rico é ainda mais afectado pelos constantes jogos de interesses e posicionamentos para adquirir posições relevantes do que a maioria dos outros. Com tudo isto, falta-lhe o tempo, a vontade e a abertura de espírito para crescerem e poder ver com outros olhos mais atentos alguns dos grandes problemas dos nossos tempos em relação aos quais mantêm, teimosamente, posições obsoletas e totalmente descredibilizadas.
Bom fim de semana.

 
At 6:33 da tarde, Blogger Alda M. Maia said...

Tive hoje a grata surpresa de ler os dois comentários. Li-os com atraso e peço desculpa.
A estes dois amigos e bons leitores, antes de mais, agradeço a visita e o desenvolvimento que deram ao que escrevi: estes comentários agradam-me sobremaneira.

Foram mesmo direitinhos à minha concepção sobre as Hierarquias Católicas. Claro está que concordo inteiramente com as vossas considerações - lá para aqueles lados vê-se uma quase total aridez de sentimentos.

Quanto à eutanásia, se o António e a Maria Celeste tiverem tempo e vontade, leiam o que escrevi no dia 21 de Março 2005 a propósito da “doce morte” e digam-me se concordam - repito, se tiverem tempo e pachorra.
Eu não considero eutanásia, quando se suspendem terapias absolutamente inúteis em seres que as rejeitam ou que vivem em estado vegetativo. Acho muito mais humano permitir que a morte siga o seu curso natural. Pouco me importa que a essa suspensão chamem eutanásia passiva, pois, para mim, não é eutanásia. Considero-o um modo bastante fundamentalista para impor princípios religiosos, ou não religiosos, que o bom senso tem dificuldade em aceitar.
Um grande abraço aos dois
Alda

 

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