quarta-feira, maio 16, 2007

CATÓLICOS E "CATOLICANTES"

Na Praça San Giovanni, em Roma, sábado passado, houve uma imponente manifestação em defesa da família - “Family Day 2007”. O motivo por que escolheram esta denominação em inglês, em vez de “Giornata della Famiglia”, por exemplo, apresenta-se-me incompreensível e francamente ridículo.

O episcopado transalpino entende que a família tradicional, fundada sobre o matrimónio católico – a única aceitável – “corre grande perigo”.
O inimigo localiza-se num projecto de lei do governo italiano cujo desígnio é reconhecer direitos às uniões de facto; mais precisamente, reconhecer direitos a conviventes … “sem distinção de sexo”.
E foi esta frase, acima de tudo, que levou o Vaticano a pôr-se em pé de guerra: pode-se lá admitir um desconchavo destes!?... Direitos, prerrogativas, tutelas a quem não contraiu o sacramento do matrimónio?! Reconhecer direitos aos homossexuais?! Não, não é tolerável; vai contra os princípios “não negociáveis” da Igreja Católica. Aliás, já “As uniões civis e o divórcio são uma ferida”.

Aquela asserção “não negociável”, repetida insistentemente por Bento XVI, não me agrada. Soa-me disjunta do que verdadeiramente corresponde à doutrina original de Jesus de Nazaré.

Pronuncia-se o grande teólogo; apaga-se o que deveria ser a acção de um grande pastor de almas, isto é: tolerância, compreensão das vicissitudes da vida moderna (de certos “males menores”, como diz o cardeal Carlo Maria Martini), actuação serena, mas firme, de um “não negociável” (aqui, sim!) espírito de caridade e misericórdia.

São-me profundamente desagradáveis os fundamentalismos islâmicos ou de qualquer outro credo religioso; pior efeito me produzem os da minha religião.

Mas voltemos ao “Family Day 2007”.
De há meses que a Igreja tinha posto em movimento várias associações católicas, sacerdotes e bispos a fim de organizar a manifestação de Roma, precisamente no dia 12 de Maio, data que coincide com os 33 anos do sim ao divórcio - referendo de 12/05/1974.
Revindicta? Demonstração de força em relação aos actos governativos que a Igreja Católica não aprova?

Para que o “Family Day” fosse um sucesso - e quem duvidaria que o não fosse?... - além das normais informações dos meios de comunicação, as paróquias distribuíram 25 milhões de prospectos; fixaram-se 250.000 cartazes em toda a Itália.
Puseram-se a caminho de Roma milhares de autocarros e comboios especiais.
O orçamente ronda o milhão de euros.
Uma perguntinha maliciosa: quem pagou a maior parte de tudo isto?

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O tema “dia da família” não passou de pretexto, por muito que afirmem o contrário. Uma lei sobre as uniões de facto em nada prejudica as demais famílias e não constitui um ataque ao sagrado vínculo do matrimónio.

Quanto à instituição família, quem não respeita e não considera o aglomerado familiar como núcleo fundamental de um país? Quem não deseja que existam leis que defendam, protejam e criem condições de prioridade absoluta para que as famílias tenham toda a protecção que um estado democrático lhes deve garantir?
Não existe ninguém que não cultive este património moral e cívico e que é comum a qualquer facção política.

Usar tons alarmistas em defesa da “família em perigo”, usar desenvoltamente, portanto, o catolicismo sincero de milhares de pessoas que se deslocaram a Roma, era necessário?

Os partidos da direita e extrema-direita, políticos “catolicantes” do centro e alguns da esquerda não deixaram escapar a oportunidade de se apoderarem do acontecimento. Nenhum deles renunciou à passerelle na Piazza San Giovanni. Não os levou àquela praça um sentimento sincero, mas a conquista de mesquinhos dividendos eleitorais.

Os organizadores bem proclamaram que não era uma manifestação contra o governo; que não seria de cariz político – embora numerosos cartazes dissessem o contrário; que não se deixariam manipular; que pertenceria a todos os católicos indistintamente e sem etiquetas políticas.
A contradizê-lo, todavia, eis um exemplo: “Quem é católico não pode estar à esquerda”- sentenciou Berlusconi, divorciado, semi-separado da segunda mulher, mas grande paladino da verdadeira família cristã como a entende o Vaticano!... Ora aqui temos o que se diz um bom catolicante!


Assim, aos promotores, saiu-lhes o tiro pela culatra! “O Vaticano de braço dado com as direitas”; “Se a Igreja e a direita caminham juntas na praça” : estes são alguns títulos dos jornais.

Lamento que não tivesse dado o braço a todos e, consequentemente, tivesse provocado um clima de antagonismos injustificáveis nos tempos de hoje: clericais, anti-clericais.
De novo, pergunto: era necessário? Ou o que pretendiam, dada a exiguidade de votos do governo no Senado, era causar o torpedeamento da lei que o Vaticano não quer que seja aprovada? Consegui-lo-ão? É provável, mas aguardemos.

O Vaticano perdeu a arte do diálogo? Entende que um país laico deve, apesar de laico, legislar exclusivamente dentro dos tais princípios inegociáveis da Igreja Católica, ignorando os cidadãos que nesses princípios não se revêem ou impossibilitados de os respeitar e, portanto, privados de direitos civis, como é o caso das uniões de facto?

Proclamar, pregar alto, incansável e claramente a doutrina cristã, é um direito e um dever da Igreja Católica.
Pelo contrário, manifestações de força e intransigência, relativamente a certos princípios, onde a misericórdia e compreensão estariam mais próximas do autêntico cristianismo, para um crente que respeita o direito de um outro ser humano, torna-se difícil seguir e compreender esses princípios ”não negociáveis”.
Alda M. Maia