domingo, janeiro 01, 2006

A SANDÁLIA DO PESCADOR

PAPA RATZINGER é, na essência da sua missão, um autêntico Vigário de Cristo ou apenas, e sempre, o intransigente guardião da Doutrina da Fé?

Agora, como Sumo Pontífice, a sua visão do mundo em que vivemos dilatou-se, abraçando toda a humanidade, ou continua “homem do Vaticano”? Como “homem do Vaticano”, entendo uma hierarquia religiosa quase exclusivamente ocupada na administração daquilo a que se poderia chamar “a política católica”.

Se é verdade que lançou uma campanha bem organizada (quer com o auxílio dos cardeais mais conservadores, quer com a potente intervenção da Opus Dei) para ser eleito papa, não me surpreende que privilegie o caminho da cruzada doutrinária.

A condenação do relativismo: “uma ditadura que não reconhece nada como definitivo”. Aonde quer chegar Bento XVI? A verdade e valores da Igreja Católica são únicos? Não existem outras verdades?
Numa democracia, onde frequentemente convivem crentes e não crentes, diversas religiões e concepções éticas, pode essa democracia laica não aplicar as regras de uma pacífica convivência? Não falemos já do mundo globalizado! Mas deixemos essas disquisições filosóficas para Pacheco Pereira (jornal Publico de 29 / 12 / 2005), visto entender que este será um Papa que eleva a “reflexão cristã” aos altos cumes da intelectualidade. Ficará então na história por essas altitudes intelectuais? Um excelso teólogo? E só por isso? Excessivo peso filosófico e redutiva acção para um Vigário de Cristo na terra.

Quando anunciaram que o novo papa seria o Cardeal Ratzinger, confesso que fiquei decepcionada. Sempre esperei na eleição do Cardeal Carlo Maria Martini, ex-Arcebispo de Milão. Que grande papa seria! Não menos intelectual de Bento XVI; talvez de espiritualidade mais alta e concentrada nos humildes e na modernidade em que nos movemos. Infelizmente, luta com o morbo de Parkinson, embora conviva serenamente com tal doença, segundo afirmou numa entrevista recente.
Se tivesse sido eleito papa - e isto é uma observação fora do contexto - tenho a certeza que jamais se intrometeria nas decisões do Governo e Parlamento Italianos, à semelhança do Papa João Paulo II. Começa a indispor o modo arrogante como, actualmente, o Vaticano, L’Osservatore Romano, e Conferência Episcopal Italiana pretendem arbitrar e gerir o laicismo da política de Itália. Dir-se-ia que a política italiana deve submeter-se à tutela vaticana.

Na última audiência pública – quarta-feira, dia 28/12 – Bento XVI dedicou a parte fundamental do seu discurso ao mistério da vida. A um certo ponto, diz: “Deus põe sobre o embrião o Seu olhar benévolo e amoroso e, como o escultor, plasma e forma a Sua criação artística, o homem” (conhecerá os sermões de Padre António Vieira?).

Muito bem, se Sua Santidade, ainda cardeal, asseverou que não é o Espírito Santo que inspira os cardeais na escolha do novo papa – consequentemente, não acredita nisso - então deve conceder-nos que não acreditemos na doutrina da Igreja quando impõe o “embrião como um indivíduo em tudo e por tudo, desde o momento da concepção. Nele estão já presentes as qualidades espirituais”.

A ciência, pelo contrário, informa que o embrião é um ser vivo, mas não uma pessoa humana. Para tal, “deveria existir um sistema nervoso completo e funcional, o que o embrião não possui” (Rita Levi Montalcini, Nobel da Medicina)
“Uma potencialidade de vida humana, uma agregação de células ainda sem uma precisa finalidade”.

Esta campanha em defesa do embrião, agora que tanto se fala das esperanças terapêutica das células estaminais, não me convence. Católica e crente, sim, mas não abdico do meu espírito crítico.

Quanto aplaudiria e admiraria o Papa se, em vez de defender com tanta insistência vidas potenciais embrionárias, usasse a mesma veemência numa vigorosa e ininterrupta campanha em defesa daquelas vidas já existentes e que tanto sofrem: fome, guerras, guerrilhas, opressões, abandono! Longe de mim a demagogia, porém, ainda não vislumbrei, nos discursos de Bento XVI, essa grande e inequívoca ânsia por tal parte da humanidade.

Paralelamente ao “anel do pescador”, seria belíssimo se, nas leis consuetudinárias que gerem a entronização de um novo papa, entrasse também a “sandália do pescador”, ainda que simbólica.
Alda M. Maia