segunda-feira, novembro 03, 2014

UM TRATADO SEM TRANSPARÊNCIA:
DEMOCRATICAMENTE, É ACEITÁVEL?

Transatlantic Trade and Investment Partnership (TTIP): Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento entre a União Europeia e os Estados Unidos da América.
A crítica unânime e constante a este acordo é a falta de transparência e o secretismo que se verifica à volta das negociações entre Bruxelas e os Estados Unidos.

No nosso país, até hoje, escassearam os artigos ou serviços jornalísticos que analisassem todos os aspectos de um tratado que, se aprovado, mudará as nossas vidas futuras. Sendo assim, alguém sabe exactamente, ou mesmo com alguma aproximação, o que é este tratado transatlântico sobre comércio e investimentos?
Algum grupo político se preocupou em envolver os cidadãos comuns, informando-os com objectividade sobre este assunto tão importante para a nossa economia e, implicitamente, a soberania dos países europeus?
Mas também é lícito formular outra pergunta: a classe política esteve bem informada sobre este assunto? Está bem ciente do que se trata?

O TTIP vem sendo negociado desde 2013, porém, em grande segredo. Nas últimas semanas foram apenas publicados os princípios gerais, mas silêncio absoluto sobre os detalhes, e bem sabemos que é nos detalhes que se esconde o diabo. Por que razão não tornar públicos esses aspectos da questão e indicar os personagens, públicos ou privados, envolvidos nas contratações?
 
Em Portugal, apenas as vantagens têm sido realçadas e não faltam arautos a descrevê-las e magnificá-las. Tive ocasião de ler os encómios de Paulo Rangel, por exemplo, e a confiança de Vital Moreira na harmonia entre as normas europeias e as norte-americanas.
Mas será assim tão fácil estabelecer essa harmonia? Há informações que relevam o impasse das negociações, precisamente porque os Estados Unidos criam dificuldades à aceitação das normas rigorosas da UE sobre os produtos agro-alimentares e opõem objecções ao respeito pelos produtos DOC, DOP e similares.
Teremos de beber vinho do Porto provindo da Califórnia? Ou saborear queijo parmesão (Parmigiano- Reggiano, DOP) produzido no Ohio?

As análises críticas e comentários na imprensa europeia coincidem. Efectivamente, algo de anormal se passa.
Anormal, por exemplo, é o Parlamento Europeu não ter o direito de acesso ao texto em discussão nem de intervenção nesse mesmo texto. Cabe-lhe apenas o direito de voto final. Isto é democrático?

Permito-me citar a primeira parte do artigo de João Camargo (Público. 01/09/2014): “Tratado Transatlântico: o Império Contra-Ataca”.
Concretiza perfeitamente as perplexidades de quem deseja ser informado e entrar no âmago das questões, questões estas que concernem, repito, as nossas vidas futuras.
“Imagina um documento, desconhecido pela maior parte da população da União Europeia e dos Estados Unidos, que substituía as leis nacionais e comunitárias de uma só vez. Imagina que esse documento era discutido atrás de portas fechadas, com as negociações entregues a burocratas não eleitos e representantes de empresas multinacionais. Imagina que esse documento quebrava à partida a legislação comunitária ao ser discutido em segredo. Imagina que o documento entrava em vigor e tu nem sabias de nada. Era uma obra de ficção ao nível de Guerra das Estrelas, com traições, acordos secretos e subversão das instituições.
Não precisas imaginar mais. Esse documento chama-se Tratado de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento (sigla TTIP)” (…)

O Nobel da Economia, Joseph Stiglitz, sempre a propósito deste tema, diz o seguinte: “O que se quer obter com este acordo não é o melhoramento do sistema de regras e de comércio positivo para os cidadãos americanos e europeus, mas garantir campo livre a empresas protagonistas de actividades económicas nocivas para o ambiente e para a saúde humana”.

Finalmente a nossa imprensa despertou. Saltou para a arena o conhecimento de um mecanismo, no que concerne os investimentos, que pôs em alarme os europeus responsáveis e informados. É o chamado “Investor-State Dispute Settlement”: a resolução de controvérsias entre o Estado e o investidor, através de um Tribunal arbitral - privado, obviamente.
Tais controvérsias resumem-se na preservação de lucros, actuais ou futuros, das empresas. Estas e as multinacionais querem usufruir de total liberdade e desregulação onde, na Europa, existem normas no respeito da saúde, do trabalho, da protecção do ambiente, dos direitos sociais.

Há quem coloque as críticas ou a defesa do TTIP como uma questão entre esquerda e conservadores. Pode ser equacionada sob esse ponto de vista?
Demasiado esquemático. Há pessoas equilibradas e responsáveis nos dois campos que sabem e querem ponderar, com acuidade e inteligência, o que deve ou não deve ser negociado.

Quanto à descrição dos “tribunais”(?) arbitrais privados de protecção do investimento - reforçada com exemplos que não deixam dúvidas -, fica-se com duas certezas: primeiro, estamos perante uma verdadeira invalidação de órgãos de soberania nacional, qual o sistema judiciário; segundo, é preciso muita ingenuidade ou desígnios pouco claros para aconselhar ou exigir com tanta desenvoltura e inconsciência a inclusão, tout court, do ISDS no tratado comercial e de investimento entre a UE e os Estados Unidos.

Contra os capitais ingentes das multinacionais ou grandes empresas e tribunais arbitrais formados por consórcios de advogados hábeis e pagos principescamente, um Estado, sobretudo com orçamentos débeis, pode ir ao encontro de penalidades incomportáveis; as PME correm o risco de desaparecerem ou serem fagocitadas pelos grandes interesses, caso lhes façam concorrência: isto são exemplos que apontam e que creio muito reais.   

O Presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, é decididamente contrário. Todavia, o nosso secretário de Estado dos Assuntos Europeus é um dos catorze signatários de uma carta que “exige à União Europeia que inclua no acordo «mecanismos de protecção dos investidores»”.
Não resta dúvida que os interesses do nosso país estão em boas mãos!...