O OCIDENTE AMEAÇADO
Captou-me, em
absoluto, a leitura do editorial de Ezio
Mauro, director do quotidiano La Repubblica, de sexta-feira passada e cujo
título é: ”Defender o Ocidente”. Achei-o interessantíssimo e decidi transcrevê-lo,
embora parcialmente, dada a sua extensão. Os sublinhados são meus.
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“DEFENDER O OCIDENTE”
“A terceira NATO
nasce em Gales depois da primeira, filha da Guerra Fria; a segunda, da idade do
meio, quando com a queda do Muro pareceu abrir-se um longo século já sem
inimigos para as democracias que reconquistaram o Novecentos.
A guerra de Crimeia
traz de novo para o coração da Europa, onde nasceram duas guerras mundiais,
tropas, mísseis, carros armados, mortos, feridos, aviões abatidos. Recomeçamos a
olhar para os nossos céus e os nossos mapas com aquela mesma inquietação pelo
futuro dos nossos filhos que os nossos pais tinham conhecido muito bem, mas nós
ainda não.
E
dos arsenais da política, da cultura, da diplomacia e da estratégia militar
reaparecem, juntamente com os velhos medos, os conceitos esquecidos das “zonas
de influência”, dos “blocos”, das “exercitações”, dos Muros, das fronteiras
europeias entre Ocidente e Oriente, com o Oeste que reencontra o seu Este e o
Kremlin fixo, novamente, na parte do “inimigo hereditário”.
Medimos com igual
inquietação as incursões de Putin nas fronteiras ucranianas e a sua
popularidade crescente em pátria, não obstante as sanções.
Descobrimos o que
deveríamos saber, isto é, que a alma imperial e imperialista da Rússia é eterna
e insuprimível, portanto, não é uma criatura ideológica do sovietismo, mas
precede-o, acompanha-o e sobrevive-lhe. Bem pelo contrário, depois dos anos de
interregno, com o punho de ferro interno e a repartição oligárquica do espólio
de Estado, o Oriente russo torna a marcar uma identidade forte, uma soberania
territorial e política que, enquanto se reapropria da Crimeia, não esconde
veleidades sobre Kiev e tentações sobre os países bálticos, como se Moscovo se
rebelasse à história e à geografia de início do século, contestando-as e
impugnando-as perante a sua obsessão reencontrada: o Ocidente.
No mesmo instante, o
califado islâmico, acabado de autoproclamar-se entre a Síria e o Iraque, ainda não
tem um verdadeiro Estado, uma capital, um sistema de relações, mas um punhal
apontado à garganta de homens escolhidos para simbolizar, no próprio martírio
individual, uma espécie de desafio universal que vai muito além do espectáculo
de morte do 11 de Setembro.
A morte encenada como
uma mensagem extrema à potência americana, perante todo o mundo, qual rito
primitivo do fanatismo religioso e marketing moderníssimo do deserto. (…)
Construir com o
terror o Califado significa, sobretudo, cancelar todos os riscos de contágio
democrático, ainda que parcial, nos países islâmicos, todos os institutos ainda
antes de qualquer instituição, em nome daquele “isolacionismo” que Bin Laden
predicava e ameaçava, a fim de expulsar
da península muçulmana “os soldados da cruz” com os seus “pés impuros” nos lugares
sagrados. Consequentemente, o inimigo definitivo torna-se claro: é o Ocidente.
Mas no momento em que
duas partes do mundo o designam, contemporaneamente, como inimigo final e
adversário eterno, o Ocidente tem uma noção e um conhecimento de si mesmo à
altura do desafio?
Tem pelo menos
consciência daquele punhal islamita apontado à sua garganta, enquanto Putin
está a reerguer um muro político e diplomático que trave a América, delimite a
Europa e bloqueie a liberdade de destinos dos povos?
A resposta da
política é inconcludente, a da diplomacia não vai além das sanções. Resta a
NATO, o vértice do País de Gales, a polémica sobre as despesas, o projecto de
exército europeu. (…)
Durante o breve
espaço “de paz”, o qual vai da queda do Muro até ao 11 de Setembro, deixámos
definhar, com as nossas próprias mãos, o conceito de Ocidente, enquanto outros
trabalhavam para construí-lo como um alvo imóvel. Desvalorizámo-lo como um
achado da guerra fria e não como um elemento da nossa identidade cultural,
institucional e política, quase como se fôssemos definidos somente pelo
adversário soviético e apenas pelo tempo da sua duração.
Também
os abalos geográficos na Europa Central - seguidos pela queda do bloco
soviético - e as propostas de alargamento da União Europeia foram geridas com
parâmetros mais económicos, de mercado e de potência que ideais.
Aquele pedaço do
Ocidente que se chama Europa pareceu incapaz, por longo tempo, de ter uma ideia
de si mesmo que não derivasse da diferença no confronto com o comunismo oriental;
quando o sovietismo caiu, mostrou dificuldade em definir-se, conceber-se como
terra onde nasceu a democracia das instituições e a democracia dos direitos.
Eis a razão da comunidade de destino – e não somente de aliança – com os
Estados Unidos, assim como as razões específicas que a Europa traz neste pacto,
isto é, o respeito pelos organismos internacionais de garantia e das regras de
legalidade internacional. Para uma aliança democrática (mesmo quando é guiada
por uma Superpotência) valem sempre. (…)
Hoje, devemos
considerar (se não tivesse sido suficiente o 11 de Setembro) que não é somente
a América o alvo, mas também este nosso conjunto de valores e este nosso
sistema de vida feito de liberdades, de instituições, de controlos, de regras,
de parlamentos, de direitos. Contemporaneamente, também pelas nossas incongruências,
misérias, erros, abusos e violências, porque somos humanos e porque a tentação
do poder é o abuso da força. (...)
Eles têm o terror de
tudo isto, não obstante o nosso testemunho infiel da democracia e o mau uso das
nossas liberdades: manifesta-o Putin com a sua soberania oligárquica;
manifesta-o, radicalmente, o Estado Islâmico.
Mas nós, estamos em
condições de defender estes nossos princípios e de crer na sua universalidade,
pelo menos potencial? Ou, pelo contrário, estamos disponíveis a admitir que, por realpolitik, direitos e liberdades devem
ser proclamados universais nesta parte do mundo, mas podem ser anunciados como
relativos noutras partes? Em resumo, estamos dispostos a defender,
verdadeiramente, a democracia sob ataque?
O desafio também está
no interior do nosso mundo, porque no afastamento da política e das
instituições dos cidadãos do Ocidente, existe a percepção de que se tornaram
instrumentos inúteis, perante a grande crise económica e as crises locais
abertas no planeta. (…)
Hoje quebrou-se a
tábua de contrapesos dos conflitos, a ligação social entre o rico e o pobre, a
responsabilidade comum de sociedade. (…)
Paralelamente, uma
parte sempre mais larga da população tem a sensação, ante a crise, que o mundo
esteja fora de controlo. Isto é, que o sistema de governance que, fatigante e orgulhosamente nos concedemos no longo
pós-guerra, encravou e não produza governo dos fenómenos em acto.
Pela primeira vez bloca-se
aquela permuta entre o cidadão e o Estado feito de liberdade e direitos em
troca de segurança.
Sentimo-nos
cidadãos dentro do Estado nacional, mas percebe-se que o Estado nação já não
controla nenhum dos fenómenos que contam na nossa época, não produziu
instituições e democracia naquele espaço supranacional dos fluxos financeiros e
informativos onde, e não por acaso, a nossa cidadania - o nosso exercício
subjectivo de direitos – é puramente formal.
Das instituições supranacionais
que estão mais perto de nós (a União Europeia) sentimos nitidamente o défice de
representação e, portanto, de democracia.
Temos nos bolsos uma
moeda comum sem saber qual é a face do soberano nela impressa, sem uma autoridade
capaz de gastá-la politicamente nas grandes crises do mundo, sem um exército
que a defenda. Por fim, da Europa
sentimos o vínculo, certamente, mas não a sua legitimidade. (…)
A própria América,
que deveria ser a Superpotência sobrevivente do Novecentos e, consequentemente,
hegemónica, adverte a crise da sua governance,
precisamente quando a eleição de Obama tinha manifestado toda a energia
democrática daquele país (…)
Porém, no momento em
que, quebrando o unitarismo de Bush, Obama, depois de ter oferecido em vão o
diálogo com o Islão, coloca a América fora das guerras no terreno, fechando uma
época. A democracia americana descobre-se desarmada e com dificuldade de
traduzir a sua força política. Vê Moscovo rearmar-se e Pequim a lucrar
vantagens competitivas à sombra das crises que investem, directamente,
Washington.
É como se
estivéssemos a testar os confins da democracia, quase já não conseguisse produzir
representação, governo e instituições capazes de responder às exigências da
época. Como se fosse uma construção do Novecentos que chegou exausta a este
perigoso início do século XXI.
Não seria o fim de
uma ideologia, mas de todo o fundamento do Estado moderno, de uma cultura
política, de uma identidade.
Por esta razão, o
Ocidente deve ser defendido, com todos os meios, de quem o condena à morte.
Também
Putin deveria reflectir sobre o desafio islamítico, perguntando-se por quem os
sinos dobram. Talvez
recuperando, nos arquivos do Kremlin, a carta que o ayatollah Khomeini escreveu
ao último secretário-geral do PCUS, em Janeiro de 1989: “É claro como cristal que o Islão herdará as Rússias”.
Ezio
Mauro -La Repubblica - 05/09/2014
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