segunda-feira, agosto 19, 2013

QUANTAS AFINIDADES COM PORTUGAL?

O artigo abaixo traduzido (traduzido do italiano) é da autoria do escritor espanhol Javier Cercas.
Lendo-o com atenção, quantas afinidades encontraremos com a nossa situação económica e política? Encontrei bastantes; no que concerne, por exemplo, as observações sobre a degenerescência dos partidos políticos, quantas similitudes! Mas parece que é um vírus maligno que alastrou por vários países europeus.

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“O MILAGRE E O DESASTRE, AS DUAS FACES DA ESPANHA”
A primeira coisa a dizer sobre a crise económica espanhola é que não é espanhola: é europeia. A segunda, não é uma crise económica: é política.
A Europa deve decidir, de uma vez por todas, se verdadeiramente quer ser uma Europa unida ou quer regressar à sua história de sempre. E é necessário decidir sem esquecer-se de um dado de facto, isto é, que a Europa é a única utopia razoável que nós, europeus, fomos capazes de imaginar.
De utopias políticas atrozes – paraísos teóricos transformados em infernos práticos – inventámo-las em grande quantidade; de utopias razoáveis, apenas esta.

Todavia, mesmo que seja um epifenómeno, uma pequena crise dentro da grande crise europeia, a crise espanhola apresenta características específicas.
No momento actual, a Espanha tem mitos problemas, mas se devesse isolar o principal, diria que são os partidos políticos; melhor dizendo: o domínio quase absoluto que os partidos políticos exercem na vida pública.

É uma coisa que vem de longe. Em meados dos anos setenta do século passado, quando iniciava a transição da ditadura à democracia, os partidos quase não existiam; existiam apenas formações frágeis e áridas de há quase meio século de clandestinidade.
E uma das maiores preocupações dos nossos “pais fundadores” foi a de criar partidos fortes.

Era uma escolha não somente sensata, mas indispensável: os partidos são o único canal verosímil das preocupações e aspirações das pessoas, pois não existe uma verdadeira democracia sem partidos. A questão foi que, em meados de 1980, quando a democracia se estava a alicerçar e se punha em movimento um ciclo de prosperidade que por mais de vinte anos pareceu não ter fim, os partidos desbordaram, tomando o controlo da justiça, das caixas económicas, dos órgãos de vigilância dos mercados e do Tribunal de Contas. Os partidos acabaram por colonizar tudo.
Mas o problema é que os partidos são, contemporaneamente, o problema e a solução: só os partidos podem transformar esta “partidocracia” numa democracia real. Bem sabemos que é muito difícil, mas os partidos espanhóis devem saber que está em jogo, simplesmente, a confiança das pessoas na democracia.

Alguém se recorda do milagre espanhol? Há alguns anos, a imprensa estrangeira criou esta expressão.
A ideia era mais ou menos a seguinte: a Espanha saiu de quarenta anos de ditadura, construíra uma democracia e tinha dado início a uma idade de ouro, propiciada por uma explosão de talento, energia e criatividade que tinham sido reprimidas por longo tempo.
Desde meados de 1990, a Espanha era uma das locomotivas da Europa; por 15 anos teve uma taxa de crescimento à volta de 4% do PIB e em 2006 superou a Itália como rendimento pró-capite.
O milagre também era político: após trinta anos de democracia - o período mais longo de liberdade na história moderna do país – certos sectores da esquerda europeia viam Zapatero como o protótipo de uma esquerda finalmente renovada, uma espécie de cruzamento entre Péricles e madre Teresa de Calcutá.
E que dizer do resto? Tínhamos Nadal e o Barça, Adriá e Almodóvar; até mesmo o juiz Garzon que distribuía justiça em todo o mundo como um Batman com a toga. Mas agora é tudo o contrário. Agora, o milagre espanhol acabou e o que resta é uma catástrofe.

Descobriu-se que o “boom” económico era um fantasma criado pela dupla ilusão da construção e do consumo. Hoje, a construção esgotou-se e o consumo afundou; o crescimento também parou.
Também Zapatero, agora, é um fantasma do passado e a Espanha é um país apenas definível como democrático, incapaz de enfrentar a sua história.
Como se ainda não bastasse, Nadal perde no primeiro turno em Wimbledon; o Barça foi humilhado pelo Bayern; Ferran Adriá entrou num longo período de férias e o último filme de Almodóvar é “ Os Amantes passageiros”.

É caso para dizer que estas duas versões da Espanha são falsas? São-no. Não porque não contenham muitas verdades, mas porque misturam verdades e mentiras: não éramos assim tão maravilhosos antes e não somos assim tão horrendos hoje.

Seja como for, os últimos trinta e tal anos foram, sob todos os pontos de vista e não graças a um milagre, mas ao esforço de todos, os melhores da história moderna da Espanha.
Não é triunfalismo, é uma obviedade. Nos meados de 1970 a Espanha era um país do terceiro mundo submetido a uma ditadura abjecta; hoje, é um país democrático que realizou, finalmente, o sonho de há dois séculos e meio de todos os progressistas espanhóis: integrar-se na Europa; o que significa que a Espanha tem muito mais esperanças de o conseguir agora do que há trinta anos.
Como procurei explicar, se o conseguir ou não, depende, em grande parte, dos partidos políticos. Mas, sobretudo, e não nos iludamos, dependerá de nós mesmos.

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Publicado no dia 14 de Agosto 2013 no jornal La Repubblica