segunda-feira, outubro 24, 2011

ANTÓNIO TABUCCHI: ANDREA ZANZOTTO
FERNANDO PESSOA

O grande poeta italiano, Andrea Zanzotto, morreu terça-feira passada com noventa anos de idade. Nascera em 10 de Outubro de 1921.

Não vou falar do que tenho lido e ouvido sobre esta grande figura da literatura italiana actual. Seria puro pretensiosismo da minha parte. Desejo somente transcrever excertos de um belíssimo artigo que António Tabucchi escreveu sobre o poeta e a conexão com o nosso Fernando Pessoa.

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“ANDREA ZANZOTTO, O POETA QUE ESCUTAVA A VOZ DA LUA”.
Faleceu ontem com a idade de 90 anos um dos maiores autores italianos. Nos seus versos, a batalha social em defesa da cultura e da paisagem”.

“Zanzotto sabia captar as vozes que vinham da lua. Mas antes de entrar em sintonia com ela, era invadido pelos sons que sobem da Terra e que a lua, por sua vez, captura, elevando-os até «aos seus reinos longínquos», quando faz engrossar a crosta terrestre e os oceanos.
Transforma-os então em palavras, a fim de enviá-los, de novo, para o nosso planeta, onde somente poucos eleitos conseguem decifrá-los.
Zanzotto era um destes poetas, e disto tomei conhecimento, quando o conheci pessoalmente. Era o ano de 1975.

[…] O segundo encontro aconteceu, graças a Fernando Pessoa. Estávamos em 1977.
Com Luciana Stegagno Picchio e Maria José de Lancastre fundáramos, em Pisa, uma revista semestral - “Cadernos Portugueses” - e dedicámos o segundo número a Fernando Pessoa, naquela época um poeta quase ignoto na Itália.
Entretanto, estava a preparar o primeiro volume de traduções pessoanas, publicado, pela editora Adelphi, em 1978.

Traduzia os textos fundamentalmente dos heterónimos Campos e Caeiro, totalmente ignorados na Itália, e escrevia sobre o problema da heteronímia que, naquele tempo, era ainda em grande parte interpretada, na Itália, segundo o modelo das “Máscaras Nuas” de Pirandello.

Veio-me à ideia entrevistar Zanzotto sobre Pessoa. As respostas de Andrea são extraordinárias! Com o acume de um rabdomante que somente possui um poeta sintonizado no mesmo comprimento de onda do poeta de quem se falava, Zanzotto entra superiormente no problema da heteronímia pelo lado linguístico.
Discorre sobre proto-escrituras; “obscuras linguagens somáticas”; conflito entre o “eu e a língua materna”; “gemações” das palavras; relações entre realidade, realidade psíquica e denominações; Kafka e Becket; sobre os pontos de luz de um computador; as propostas matemáticas de R. Thom.

Apropriei-me indevidamente um pouco daquela entrevista, acolhendo-a num meu livro sobre Pessoa. Sinto-me feliz, todavia, que Andrea também a tenha incluído nos seus ensaios e José Corti escolhido para a selecção dos seus “Essais Critiques”, publicados em Paris em 2006.
É o sinal de uma paixão compartilhada, de um entendimento.

Visto que Fernando Pessoa foi o ponto de partida de um colóquio, quer por via telefónica, quer por escrito, embora na sua descontinuidade em todos estes anos, constituiu uma grande cumplicidade entre mim e Andrea.

[…] Zanzotto é um poeta de catalogação difícil. […] Era perfeitamente consciente de ser um poeta antiquíssimo colocado, por acaso, na nossa contemporaneidade. Um daqueles vates que, como os pré-socráticos, recolhem as vozes do cosmos e as que circulam no nosso profundo. Pertence àquela rara família dos poetas “lunares” (a de Hölderlin, Rilke, Pessoa, Kafka e, antes de todos, Leopardi, na Itália).

[…] Hoje, a poesia que desejo recordar é “Náutica Celeste”: «Desejaria retribuir-te a visita / nos teus reinos longínquos / ó tu que sempre / filha regressas ao meu aposento / dos céus, lua».
Andrea partiu em visita.”

António Tabucchi – La Repubblica, 19 Outubro 2011