domingo, fevereiro 04, 2007

MAS QUE “CAGNARA”!

Cagnara, vocábulo italiano que, no sentido próprio, significa latido de muitos cães juntos; em sentido figurado (o de maior uso): confusão, barafunda, vozearia descontrolada ou discussões rumorosas que somente traduzem a vontade de quem deseja falar mais alto.

Mesmo para aquela percentagem dos habituais indiferentes a quaisquer manifestações cívicas, até mesmo para esses, torna-se impossível não seguir a campanha sobre a despenalização do aborto.

Devo dizer que não apresenta aspectos de uma campanha, mas de uma “cruzada”: desde os tons apocalípticos às excomunhões, aos hinos à liberdade, à sacralidade da vida, e por aí adiante, não há “princípios” que não sejam arremessados contra quem manifeste ideias opostas.

Investida por esta balbúrdia de vozes, o primeiro termo que me ocorreu foi, precisamente, “cagnara” (canhara). Sinceramente, não me merece outro.

Sempre esperei que a campanha ora em curso, dada a delicadeza do tema, se desenvolvesse em forma moderada, a meio tom, embora com o máximo empenho de quem nela quis participar e recorrendo a argumentações sérias sobre as várias interpretações que a caracterizam.

No entanto, onde deveria esclarecer-se perplexidades, instalaram-se raciocínios que não provêm nem são elaborados pela consciência e bom senso, mas pela exacerbação de princípios ou fundamentalismos religiosos.
Paralelamente, quando se usa, como argumento central, a inteira liberdade de quem deve decidir, descura-se o dramatismo do caso.

O referendo quer determinar a despenalização, ou não, da interrupção voluntária da gravidez, dentro de certas condições e por opção da mulher.

É óbvio que há mulheres frívolas, levianas, cujo egoísmo e insensibilidade sufocam os demais sentimentos. Para estas, consequentemente, o aborto significa libertarem-se de um empecilho. Mulheres deste género são a excepção e, penalizações ou não penalizações, o aborto efectuá-lo-ão desenvoltamente: na clandestinidade ou em clínicas privadas, dentro ou fora do país; nada as demoverá, nada as comoverá.

Falemos, portanto, daquela generalidade que não é frívola nem leviana.

Sobre a sacralidade da vida humana, partindo do embrião, parece-me que se usa e abusa de uma ênfase mais próxima da intransigência religiosa que de uma análise sem preconceitos.

Quando leio ou escuto insistentes referências à consciência, penso imediatamente na consciência de quem teve ou deve abortar. Estas mulheres também têm uma consciência, não é necessário que outrem a sinta por elas. Certamente que pensarão no ser que começou a desenvolver-se no próprio ventre: um filho! Se decidiram interromper a gravidez, circunstâncias graves se impuseram e o drama não deixa de ser parte incindível de tal opção.

Assim, é-me impossível conter a sensação de repugnância defronte a acções penais onde, normalmente, existem decisões traumáticas. É-me impossível não sentir um desagradável mal-estar perante criminalizações em vez de auxílio moral e comparticipação numa escolha tão dolorosa.

Se o sim predominar, espero que se criem consultórios de aconselhamento, obrigatórios, a fim que todos os esclarecimentos sejam dados e toda a ajuda, nessa escolha, seja prestada por pessoas idóneas e bem preparadas.

Evidentemente que votarei SIM à despenalização do aborto; e sem a mínima hesitação.

****

Em caso de dúvida, o Sr. Cardeal-patriarca de Lisboa aconselhou a abstenção. Não me parece um alvitre digno de uma cidadania consciente.

Nunca experimentei simpatia pela renúncia a um dever e direito, exclusivos de cidadãos livres e responsáveis da harmonia da vida cívica do país onde vivem.

Nasci e cresci dentro de uma ditadura. A democracia restituiu-me este direito de participar e contribuir, com o meu voto livre, para um desenvolvimento moderno, próspero e equilibrado do nosso País, isto é, um desenvolvimento que nunca se desvie das mais puras regras democráticas.
De tal direito nunca abdicarei.
Alda M. Maia

4 Comments:

At 4:46 da tarde, Blogger Manuel Fidalgo said...

Nesta terra acontecem episódios inenarráveis. No Domingo passado subíamos a rua Adriano, no passeio que distribuía papelinhos do Sim. No outro lado, a descer, cruzou-se connosco, de bandeiras negras a acenar, a comitiva do Não. No meio da rua, descia uma caravana automóvel da mesma cor negra. Foi quando aquilo apareceu. Trajava de preto, tinha na mão a bandeira preta e montava uma mota preta; onde instalara, apontando para o passeio ( para ser rigoroso, o passeio onde seguiam os de bandeira negra), uma metralhadora preta. Não vou tomar a parte pelo todo, nem afirmar que a arma era verdadeira. O certo, certo, é que a criatura desfilava pela rua abaixo, apregoando a defesa da Vida. Só que não sei de quem!

 
At 10:10 da tarde, Blogger Manuel Fidalgo said...

Ah, esqueci-me há pouco de dizer (embora se subentenda),que também alinho, como de resto é uso, nesse plebeíssimo acto de votar. Não esqueço as muitas vezes que tivemos as autoridades fascistas à perna, quando nos limitávamos a apelar ao recenseamento eleitoral! Vou votar Sim. Muito simplesmente, Sim!

 
At 11:13 da tarde, Blogger Alda M. Maia said...

Não sei o que se passa com a mecânica dos comentários. Dou o nome de utente e password: a resposta é que o password não está correcto. Se nem no meu próprio blogue estes dados não são aceites, francamente, não percebo a que princípios obedecem.

Ciao, Manel!
Obrigada pelas suas considerações.
Só tenho pena não ter assistido à cena que descreve!
Alda

 
At 11:15 da tarde, Blogger Alda M. Maia said...

Ah! percebi agora. Devo dar outros dados. Que complicações!
Alda

 

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