O QUE ERA O MEU “ANALFABETISMO” POLÍTICO
Uso o termo “analfabeta” para descrever a minha situação, relativamente à política, quando parti de Portugal. As minhas noções sobre o que fosse uma democracia eram muito vagas, imperfeitas: elementares.
Nasci e cheguei à idade adulta em pleno período ditatorial; ninguém nos ensinava ou permitia saber algo sobre o funcionamento de uma democracia.
Do Brasil chegavam-me revistas com páginas completamente cobertas por uma espessa camada de tinta preta e com a infalível legenda: Visado pela comissão de censura.
Tudo o que pudesse contribuir para a formação de uma consciência cívica, onde os direitos e deveres fossem amplamente esclarecidos, era matéria absolutamente inconcebível.
Éramos considerados atrasados mentais, consequentemente, o saber ou o conhecimento do que quer que fosse chegava-nos, exclusivamente, através dos severos e doentios filtros salazaristas.
Nesses tempos, por exemplo, tive de ler “Quando os Lobos Uivam” clandestinamente - uma edição de contrabando, chegada do Brasil a uma minha amiga. E também clandestinamente, deliciei-me e diverti-me com a leitura do panfleto que Aquilino Ribeiro escrevera em resposta à proibição do livro: “Quando os Lobos Julgam, a Justiça Uiva”.
Nunca fui “do contra” (expressão muito em voga, nesse tempo), porque não tinha a mínima preparação política. Não era aqui, em V. N. de Famalicão, que encontraríamos ambiente propício para que nos chegassem esclarecimentos desse género. Além disso, o medo da Pide regelava-nos.
Tínhamos, todavia, dois paladinos do anti-salazarismo: O Dr. Armando Bacelar e o Dr. Lino Lima.
De vez em quando, desapareciam: a Pide levara-os para a prisão.
Gozavam de toda a minha simpatia, e pouco me importava que fossem pintados como "tenebrosos comunistas".
Paralela e paradoxalmente, na idade da razão, adquiri a noção nítida do que significava uma ditadura, e começou o meu descontentamento.
Sempre que nos arregimentavam para ir aplaudir e agitar bandeirinhas à visita de qualquer figura importante do regime, olhava para a cara dele ou deles, via-os mediocremente banais, o meu resmungo de jovem irreverente não variava: Gostava de saber por que estamos aqui em hosanas a este (ou estes) merdas.
Já como professora primária e os hosanas estavam sempre em programa, no meu íntimo, eles, dirigentes da Nação (não era do país: era da Nação!), continuavam a merecer-me uma estima totalmente negativa. Poderia tratar-se de pessoas com méritos, mas o meu juízo era implacável: Se fossem inteligentes não fariam parte de uma ditadura.
Fui para a Itália: que paraíso de publicações para um esfomeada de conhecimentos até então proibidos!
Da voracidade como me lancei a ler tudo o que valesse a pena ser lido, ficou-me uma espécie de intoxicação pela leitura de todas as publicações de carácter informativo. É uma intoxicação que ainda perdura; a intoxicação por outras leituras já me vem desde que aprendi a ler.
O motivo por que me estou a recordar de tudo isto foi o dia de sexta-feira passada, dia 25 de Abril.
Não estava cá e não pude viver essa grande embriaguez do sentir-se livres.
A notícia, através da rádio italiana, chegou-me às nove da manhã: Rivoluzione in Portogallo!
Estava a almoçar e foi tal a minha agitação que a chávena do almoço caiu por terra.
Recordo com nitidez o meu primeiro comentário: “Finalmente fazemos parte da Europa. Acabou-se a prisão”
Geograficamente, éramos europeus; politica e socialmente, vivíamos num país pouco ou nada considerado pelos demais países democráticos; vivíamos num gueto.
Imediatamente telefonei ao meu marido a dar a boa nova. Resposta muito italiana: “Era hora que o teu País acordasse! Parabéns”.
Mais vale tarde que nunca, vai passear – comentei eu. Estava tão satisfeita com a”Rivoluzione in Portogallo” que não aceitei aquela velada censura ao letargo em que vivemos por tantos anos.
Naquele dia, não dormi e vivi agarrada à rádio. Como radioamadores, tínhamos bons receptores, mas em onda média, as emissões de Portugal chegavam fracas. Só à noite pude captar as notícias em boas condições e ouvir uma belíssima canção, canção que nunca mais escutei: Não há machado que corte/ a raiz do pensamento … etc.
Uso o termo “analfabeta” para descrever a minha situação, relativamente à política, quando parti de Portugal. As minhas noções sobre o que fosse uma democracia eram muito vagas, imperfeitas: elementares.
Nasci e cheguei à idade adulta em pleno período ditatorial; ninguém nos ensinava ou permitia saber algo sobre o funcionamento de uma democracia.
Do Brasil chegavam-me revistas com páginas completamente cobertas por uma espessa camada de tinta preta e com a infalível legenda: Visado pela comissão de censura.
Tudo o que pudesse contribuir para a formação de uma consciência cívica, onde os direitos e deveres fossem amplamente esclarecidos, era matéria absolutamente inconcebível.
Éramos considerados atrasados mentais, consequentemente, o saber ou o conhecimento do que quer que fosse chegava-nos, exclusivamente, através dos severos e doentios filtros salazaristas.
Nesses tempos, por exemplo, tive de ler “Quando os Lobos Uivam” clandestinamente - uma edição de contrabando, chegada do Brasil a uma minha amiga. E também clandestinamente, deliciei-me e diverti-me com a leitura do panfleto que Aquilino Ribeiro escrevera em resposta à proibição do livro: “Quando os Lobos Julgam, a Justiça Uiva”.
Nunca fui “do contra” (expressão muito em voga, nesse tempo), porque não tinha a mínima preparação política. Não era aqui, em V. N. de Famalicão, que encontraríamos ambiente propício para que nos chegassem esclarecimentos desse género. Além disso, o medo da Pide regelava-nos.
Tínhamos, todavia, dois paladinos do anti-salazarismo: O Dr. Armando Bacelar e o Dr. Lino Lima.
De vez em quando, desapareciam: a Pide levara-os para a prisão.
Gozavam de toda a minha simpatia, e pouco me importava que fossem pintados como "tenebrosos comunistas".
Paralela e paradoxalmente, na idade da razão, adquiri a noção nítida do que significava uma ditadura, e começou o meu descontentamento.
Sempre que nos arregimentavam para ir aplaudir e agitar bandeirinhas à visita de qualquer figura importante do regime, olhava para a cara dele ou deles, via-os mediocremente banais, o meu resmungo de jovem irreverente não variava: Gostava de saber por que estamos aqui em hosanas a este (ou estes) merdas.
Já como professora primária e os hosanas estavam sempre em programa, no meu íntimo, eles, dirigentes da Nação (não era do país: era da Nação!), continuavam a merecer-me uma estima totalmente negativa. Poderia tratar-se de pessoas com méritos, mas o meu juízo era implacável: Se fossem inteligentes não fariam parte de uma ditadura.
Fui para a Itália: que paraíso de publicações para um esfomeada de conhecimentos até então proibidos!
Da voracidade como me lancei a ler tudo o que valesse a pena ser lido, ficou-me uma espécie de intoxicação pela leitura de todas as publicações de carácter informativo. É uma intoxicação que ainda perdura; a intoxicação por outras leituras já me vem desde que aprendi a ler.
O motivo por que me estou a recordar de tudo isto foi o dia de sexta-feira passada, dia 25 de Abril.
Não estava cá e não pude viver essa grande embriaguez do sentir-se livres.
A notícia, através da rádio italiana, chegou-me às nove da manhã: Rivoluzione in Portogallo!
Estava a almoçar e foi tal a minha agitação que a chávena do almoço caiu por terra.
Recordo com nitidez o meu primeiro comentário: “Finalmente fazemos parte da Europa. Acabou-se a prisão”
Geograficamente, éramos europeus; politica e socialmente, vivíamos num país pouco ou nada considerado pelos demais países democráticos; vivíamos num gueto.
Imediatamente telefonei ao meu marido a dar a boa nova. Resposta muito italiana: “Era hora que o teu País acordasse! Parabéns”.
Mais vale tarde que nunca, vai passear – comentei eu. Estava tão satisfeita com a”Rivoluzione in Portogallo” que não aceitei aquela velada censura ao letargo em que vivemos por tantos anos.
Naquele dia, não dormi e vivi agarrada à rádio. Como radioamadores, tínhamos bons receptores, mas em onda média, as emissões de Portugal chegavam fracas. Só à noite pude captar as notícias em boas condições e ouvir uma belíssima canção, canção que nunca mais escutei: Não há machado que corte/ a raiz do pensamento … etc.
Quem era o intérprete? A voz era muito bonita.
Quem seria o autor?
Alda M. Maia
Alda M. Maia